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TENDÊNCIAS/DEBATES
Cidadãos acima de qualquer suspeita
CAETANO LAGRASTA NETO
Esse tipo de "perseguição" interessa à criminalidade organizada pois os "cabeças" continuarão sem ser identificados
SEMPRE SERÁ difícil escrever no
fragor dos acontecimentos, mas
este é o dilema do jornalismo
responsável: a falta, omissão ou demora no redigir notícias ou comentários indicam covardia ou envelhecimento. Do noticiário de hoje, se extrai
ao menos uma certeza: membros de
Poder envolvidos com o crime organizado devem ser exemplarmente
punidos, especialmente aqueles submetidos ao Estado-Justiça, por ser o
único ainda capaz de se opor à complacência do Estado-poder.
Após a seqüência ininterrupta de
escândalos -que, felizmente, desde
algum tempo, têm sido ao menos objeto de notícia e alguma apuração-,
se verifica que o cerne do fenômeno
continua sem ser molestado. São detidos e, logo depois, soltos, graças aos
advogados excelentes e às fraturas da
lei, os agentes periféricos da magistratura, da polícia, da advocacia, dos
congressistas, da delinqüência organizada, as simples lavadeiras do dinheiro sujo, e assim vai.
Mas, onde os chefes ou o chefe de
todos os chefes? Quer dizer então que
o crime organizado são as estruturas
do bingo, do jogo do bicho, do contrabando, mas nada tem a ver com o as
estruturas do poder de Estado, do tráfico de entorpecentes, do cassino financeiro? É mesmo?
Será talvez porque os bicheiros e
traficantes de morros e subúrbios estão isolados em seus respectivos redutos e, por sorte, acabam por patrocinar chacinas apenas entre suas
gangs e jovens devedores ou informantes ou que o contrabando é o
"seu" Lao e o dinheiro sujo é lavado
pelo "Barcelona"?
Se assim for, podemos dormir tranqüilos. O Estado não só vigia como
pune, principalmente negros, putas,
pobres, mesmo que o produto do crime se mostre reles e desde que estes
agentes apodreçam nas prisões pelo
furto de um xampu ou de algumas cebolas, enquanto aqueles acabam libertos, logo depois -coisas, aliás, admitidas como edificantes exemplos.
E a mídia, tem ela correspondido à
sua função de informar e criticar?
Criticar é tarefa fácil se a partir do
noticiário disponível, pois se este não
se reveste de fundamento científico e
não se apresenta razoavelmente comprovado, é suficiente para denegrir o
indiciado, fazer estardalhaço e nada
concluir, sempre sob o manto da "liberdade de imprensa". Porém, não há
como negar que investigações jornalísticas que acabaram na renúncia de
Nixon ou, ante a repercussão, no impeachment de Collor, se revestiram
de ampla margem de segurança e certeza. Não assim aquelas do Toninho
do PT ou de Celso Daniel, que nem sequer se sabe aonde foram parar.
Releva mencionar, pela gravidade:
o noticiário sobre crime organizado
ou providências legislativas votadas
em outros países recebem acompanhamento pífio.
Ninguém sabe o que aconteceu
com a máfia italiana após as mortes
de Falcone e Borsellino e das prisões
de Totó Riina e Provenzano. Também
não se noticiou sobre as providências
para seu combate integrado. Mas já se
sabe que a era Berlusconi perseguiu,
com sua maioria legislativa, juízes
(membros do Ministério Público) do
"pool antimáfia", arrancando-lhes o
poder das detenções e a amplitude
das investigações -sempre por pressão dos deputados e senadores, aliados aos grandes escritórios de advocacia, instrumentos evidentes dos
criminosos de colarinho branco.
Assim, e sempre, na história da humanidade, aquele que é rei tem pelo
menos um olho e, desde que possa
viajar ou importar livros, revistas e
jornais, se souber ler em outra língua,
se tiver acesso à internet ou às televisões estrangeiras, acaba por impor
vantagem sobre a patuléia.
Impõe-se concluir que essa espécie
de "perseguição", espalhafatosa e
quase sempre ineficiente, interessa à
criminalidade organizada e a seus asseclas menos gabaritados e mais expostos, porque os "cabeças" continuarão sem ser identificados, a navegar em iates, desfrutando uma riqueza impossível de ser atingida pelo trabalho, rindo do fisco, do Congresso,
da Polícia, da magistratura e de acolitados pelo Estado.
Ao cabo, será que os anos de ditadura não puseram e mantêm outras
classes sociais ou funções acima do
bem e do mal? A perseguição integrada deve estar atenta a todos os graus e
ramos da atividade de um Estado moribundo, sejam eles civis, militares ou
eclesiásticos. Nessa tragédia, há que
indagar sobre a participação de sociedades e de igrejas -ao recordar a presença do Banco Ambrosiano, da maçonaria e da Opus Dei nas conjuras da
máfia italiana dos anos 70/80.
O combate ao crime organizado no
mundo sempre será trabalho para
profissionais, e não obra de amadores, ainda que bem-intencionados.
CAETANO LAGRASTA NETO, 63, é desembargador do
Tribunal de Justiça de São Paulo.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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