São Paulo, segunda-feira, 30 de abril de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Cidadãos acima de qualquer suspeita

CAETANO LAGRASTA NETO

Esse tipo de "perseguição" interessa à criminalidade organizada pois os "cabeças" continuarão sem ser identificados

SEMPRE SERÁ difícil escrever no fragor dos acontecimentos, mas este é o dilema do jornalismo responsável: a falta, omissão ou demora no redigir notícias ou comentários indicam covardia ou envelhecimento. Do noticiário de hoje, se extrai ao menos uma certeza: membros de Poder envolvidos com o crime organizado devem ser exemplarmente punidos, especialmente aqueles submetidos ao Estado-Justiça, por ser o único ainda capaz de se opor à complacência do Estado-poder.
Após a seqüência ininterrupta de escândalos -que, felizmente, desde algum tempo, têm sido ao menos objeto de notícia e alguma apuração-, se verifica que o cerne do fenômeno continua sem ser molestado. São detidos e, logo depois, soltos, graças aos advogados excelentes e às fraturas da lei, os agentes periféricos da magistratura, da polícia, da advocacia, dos congressistas, da delinqüência organizada, as simples lavadeiras do dinheiro sujo, e assim vai.
Mas, onde os chefes ou o chefe de todos os chefes? Quer dizer então que o crime organizado são as estruturas do bingo, do jogo do bicho, do contrabando, mas nada tem a ver com o as estruturas do poder de Estado, do tráfico de entorpecentes, do cassino financeiro? É mesmo?
Será talvez porque os bicheiros e traficantes de morros e subúrbios estão isolados em seus respectivos redutos e, por sorte, acabam por patrocinar chacinas apenas entre suas gangs e jovens devedores ou informantes ou que o contrabando é o "seu" Lao e o dinheiro sujo é lavado pelo "Barcelona"?
Se assim for, podemos dormir tranqüilos. O Estado não só vigia como pune, principalmente negros, putas, pobres, mesmo que o produto do crime se mostre reles e desde que estes agentes apodreçam nas prisões pelo furto de um xampu ou de algumas cebolas, enquanto aqueles acabam libertos, logo depois -coisas, aliás, admitidas como edificantes exemplos.
E a mídia, tem ela correspondido à sua função de informar e criticar?
Criticar é tarefa fácil se a partir do noticiário disponível, pois se este não se reveste de fundamento científico e não se apresenta razoavelmente comprovado, é suficiente para denegrir o indiciado, fazer estardalhaço e nada concluir, sempre sob o manto da "liberdade de imprensa". Porém, não há como negar que investigações jornalísticas que acabaram na renúncia de Nixon ou, ante a repercussão, no impeachment de Collor, se revestiram de ampla margem de segurança e certeza. Não assim aquelas do Toninho do PT ou de Celso Daniel, que nem sequer se sabe aonde foram parar.
Releva mencionar, pela gravidade: o noticiário sobre crime organizado ou providências legislativas votadas em outros países recebem acompanhamento pífio.
Ninguém sabe o que aconteceu com a máfia italiana após as mortes de Falcone e Borsellino e das prisões de Totó Riina e Provenzano. Também não se noticiou sobre as providências para seu combate integrado. Mas já se sabe que a era Berlusconi perseguiu, com sua maioria legislativa, juízes (membros do Ministério Público) do "pool antimáfia", arrancando-lhes o poder das detenções e a amplitude das investigações -sempre por pressão dos deputados e senadores, aliados aos grandes escritórios de advocacia, instrumentos evidentes dos criminosos de colarinho branco.
Assim, e sempre, na história da humanidade, aquele que é rei tem pelo menos um olho e, desde que possa viajar ou importar livros, revistas e jornais, se souber ler em outra língua, se tiver acesso à internet ou às televisões estrangeiras, acaba por impor vantagem sobre a patuléia.
Impõe-se concluir que essa espécie de "perseguição", espalhafatosa e quase sempre ineficiente, interessa à criminalidade organizada e a seus asseclas menos gabaritados e mais expostos, porque os "cabeças" continuarão sem ser identificados, a navegar em iates, desfrutando uma riqueza impossível de ser atingida pelo trabalho, rindo do fisco, do Congresso, da Polícia, da magistratura e de acolitados pelo Estado.
Ao cabo, será que os anos de ditadura não puseram e mantêm outras classes sociais ou funções acima do bem e do mal? A perseguição integrada deve estar atenta a todos os graus e ramos da atividade de um Estado moribundo, sejam eles civis, militares ou eclesiásticos. Nessa tragédia, há que indagar sobre a participação de sociedades e de igrejas -ao recordar a presença do Banco Ambrosiano, da maçonaria e da Opus Dei nas conjuras da máfia italiana dos anos 70/80.
O combate ao crime organizado no mundo sempre será trabalho para profissionais, e não obra de amadores, ainda que bem-intencionados.


CAETANO LAGRASTA NETO, 63, é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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