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DEMÉTRIO MAGNOLI
Os letrados
contra a cidade
O esplendor da Antiguidade
clássica refletiu o lugar central
ocupado pela cidade: a polis helênica e
a urbes romana. Mas era um esplendor de fachada, pois não existia, virtualmente, uma economia urbana. O
universo do trabalho correspondia ao
campo, o amplo locus da agricultura e
da maior parte da manufatura. A cidade, pelo contrário, representava o
universo do ócio: a política, a filosofia,
os prazeres.
A herança da "cidade radiosa" do
mundo greco-romano inspirou os urbanistas americanos do século 19 que
imaginaram a cidade universitária. O
campus-parque nasceria nos arrabaldes, isolado da cidade industrial, protegido dos rolos de fumaça negra e do
tumulto das multidões. Nesse jardim
ensolarado do saber, as musas encantariam os letrados, o ócio se libertaria
do convívio com o trabalho e o ideal
helênico seria restaurado. A Cidade
Universitária da USP é um fruto retardatário dessa tradição. A transferência das faculdades para o novo campus, nos longínquos "charcos do Butantã", foi acelerada pelas manifestações estudantis de 1968 contra a ditadura militar, cujo foco era o antigo
prédio da rua Maria Antônia, na região central de São Paulo. Mas o campus logo se viu envolvido pela cidade
em expansão. Nos anos de chumbo,
desempenhou os papéis paralelos de
centro de resistência intelectual e parque público. Nos finais de semana,
seus bosques, jardins e praças eram
ocupados por famílias, esportistas e
namorados. Até que, há dez anos, a
USP ergueu muros, implantou guaritas e fechou seus portões à cidade. Há
dois meses, o movimento concluiu-se
com a proibição do uso de suas vias
por ciclistas-atletas.
O protesto dos ciclistas, que ecoam a
indignação dos antigos freqüentadores, conseguiu sensibilizar o governo
do Estado. Mas nada sensibiliza a própria USP, que repete os argumentos
usados em 1995 para fechar o campus,
tratando-o como patrimônio privado
e negando à população o uso de 3 milhões de m2 (o dobro do Ibirapuera)
de espaço público. Unidos na rejeição
à cidade, burocratas, professores e até
alunos apontam pequenos atos de
vandalismo, eventuais incidentes e
uma difusa perturbação da tranqüilidade como justificativas para o apego
fanático às suas muralhas policiadas.
A intransigência dos letrados não
deriva desses pretextos. Ela reflete a
persistência e, mais ainda, a atualização do ideal da "cidade radiosa". A
USP que monta barricadas nas suas
fronteiras imita os condomínios fechados da metrópole contemporânea, com suas milícias de segurança,
seus sistemas de vigilância e alarme,
seus cadastros de visitantes e, sobretudo, sua desconfiança atemorizada
diante da "cidade dos bárbaros". A
privatização do espaço público que
ela promove nada mais é do que a extensão de um processo geral de cancelamento dos conceitos gêmeos de cidade e cidadania.
O Conselho do Campus da USP negou, por unanimidade, a reabertura
aos ciclistas e nem sequer discutiu a
revisão da norma de fechamento nos
finais de semana. O Conselho Universitário, por sua vez, continua a estimular o funcionamento de fundações
privadas que utilizam fragmentos da
universidade para implantar lucrativos negócios particulares. Não há
contradição: a proibição da entrada
dos cidadãos protege a privacidade
dos letrados, enquanto a permissão
da entrada dos empresários assegura
o seu bem-estar material.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br
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