São Paulo, quinta-feira, 30 de junho de 2005

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Os letrados contra a cidade

O esplendor da Antiguidade clássica refletiu o lugar central ocupado pela cidade: a polis helênica e a urbes romana. Mas era um esplendor de fachada, pois não existia, virtualmente, uma economia urbana. O universo do trabalho correspondia ao campo, o amplo locus da agricultura e da maior parte da manufatura. A cidade, pelo contrário, representava o universo do ócio: a política, a filosofia, os prazeres.
A herança da "cidade radiosa" do mundo greco-romano inspirou os urbanistas americanos do século 19 que imaginaram a cidade universitária. O campus-parque nasceria nos arrabaldes, isolado da cidade industrial, protegido dos rolos de fumaça negra e do tumulto das multidões. Nesse jardim ensolarado do saber, as musas encantariam os letrados, o ócio se libertaria do convívio com o trabalho e o ideal helênico seria restaurado. A Cidade Universitária da USP é um fruto retardatário dessa tradição. A transferência das faculdades para o novo campus, nos longínquos "charcos do Butantã", foi acelerada pelas manifestações estudantis de 1968 contra a ditadura militar, cujo foco era o antigo prédio da rua Maria Antônia, na região central de São Paulo. Mas o campus logo se viu envolvido pela cidade em expansão. Nos anos de chumbo, desempenhou os papéis paralelos de centro de resistência intelectual e parque público. Nos finais de semana, seus bosques, jardins e praças eram ocupados por famílias, esportistas e namorados. Até que, há dez anos, a USP ergueu muros, implantou guaritas e fechou seus portões à cidade. Há dois meses, o movimento concluiu-se com a proibição do uso de suas vias por ciclistas-atletas.
O protesto dos ciclistas, que ecoam a indignação dos antigos freqüentadores, conseguiu sensibilizar o governo do Estado. Mas nada sensibiliza a própria USP, que repete os argumentos usados em 1995 para fechar o campus, tratando-o como patrimônio privado e negando à população o uso de 3 milhões de m2 (o dobro do Ibirapuera) de espaço público. Unidos na rejeição à cidade, burocratas, professores e até alunos apontam pequenos atos de vandalismo, eventuais incidentes e uma difusa perturbação da tranqüilidade como justificativas para o apego fanático às suas muralhas policiadas.
A intransigência dos letrados não deriva desses pretextos. Ela reflete a persistência e, mais ainda, a atualização do ideal da "cidade radiosa". A USP que monta barricadas nas suas fronteiras imita os condomínios fechados da metrópole contemporânea, com suas milícias de segurança, seus sistemas de vigilância e alarme, seus cadastros de visitantes e, sobretudo, sua desconfiança atemorizada diante da "cidade dos bárbaros". A privatização do espaço público que ela promove nada mais é do que a extensão de um processo geral de cancelamento dos conceitos gêmeos de cidade e cidadania.
O Conselho do Campus da USP negou, por unanimidade, a reabertura aos ciclistas e nem sequer discutiu a revisão da norma de fechamento nos finais de semana. O Conselho Universitário, por sua vez, continua a estimular o funcionamento de fundações privadas que utilizam fragmentos da universidade para implantar lucrativos negócios particulares. Não há contradição: a proibição da entrada dos cidadãos protege a privacidade dos letrados, enquanto a permissão da entrada dos empresários assegura o seu bem-estar material.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br


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