São Paulo, sexta-feira, 30 de junho de 2006

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De novo?

Lula reaviva o mito do líder amado pelo "povo" e acossado pela "elite", mas instituições avançaram muito desde Vargas

"VOLTEI nos braços do povo" é uma sentença repisada na mitologia política brasileira. Getúlio Vargas colocou-a na "Carta-testamento" de agosto de 1954, pouco antes de suicidar-se. Tentava confirmar, com tintas de drama, a lenda do líder perseguido pelas "elites", mas amado pela massa dos pobres e humildes. Era o fecho da promessa de volta por cima, nos sempiternos "braços do povo", lançada quando o ditador foi obrigado a renunciar, em 1945.
Acossado, Jânio Quadros tentou reativar o feitiço no ato de sua renúncia, em 1961. Até o mês, agosto, se repetia. Os inimigos estavam nomeados em sua carta de entrega do cargo como "forças terríveis"; faziam as vezes das "forças e [d]os interesses contra o povo" -mais à frente esmiuçados nos "grupos internacionais" aliados aos "nacionais", ambos "revoltados contra o regime de garantia do trabalho"- enunciados no célebre texto de Vargas. Mas, como os braços do povo não o vieram acudir, a renúncia de Jânio acabou consumada.
Trinta anos depois foi Fernando Collor de Mello quem clamou ao "povo" que saísse às ruas de verde e amarelo para defender seu mandato, que periclitava. Tiro que saiu pela culatra: as pessoas protestaram de preto, e o político eleito pelo PRN em 1989 foi cassado pelo Congresso.
Chegou a vez de Luiz Inácio Lula da Silva homenagear o mito varguista. "Lula de novo, nos braços do povo" é o bordão que, em ritmo de baião, será entoado em sua campanha por um segundo mandato. O discurso contra as "elites" já não é tão enfático como o de uns meses atrás, quando o escândalo do mensalão batia à porta de seu gabinete. Mas o presidente cujo governo promove o espetáculo do crescimento dos lucros bancários continua a atacar os "representantes de setores elitistas do país".
Como Vargas -"o ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo"-, Lula tenta encarnar o figurino do "predestinado" que supera com paciência o bombardeio adversário, não deixando de condenar oposições que "fazem da agressão e da calúnia suas principais armas".
Floresce agora, contudo, a mais significativa evocação varguista pelo atual presidente da República. "Seria tão mais fácil a gente governar se tivéssemos de cuidar só dos pobres. Os pobres não dão trabalho, por isso por muito tempo foram esquecidos." Não representa novidade que, na cosmologia de Lula, a história tenha começado na sua Presidência -pobres eram "esquecidos" no passado, agora não mais; e vão para a lata do lixo décadas de construção da rede de proteção social pelo Estado brasileiro.
Novidade há na incipiente formulação da utopia de uma sociedade sem conflito, sem política e sem instituições, na qual o governante fala diretamente com "o povo". A alegoria pode ser o emblema do que se tornou a candidatura Lula, afastada de grupos e instâncias representativas, mas contrasta com a realidade do Brasil meio século após o suicídio de Vargas. As instituições democráticas existem e estão fortalecidas, e aí reside a maior garantia de que a farsa do varguismo lulista não vai extrapolar o terreno da propaganda para impor uma agenda autoritária.


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