|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
JOSÉ SARNEY
Europa, verão
e balas
Na Áustria, em Salzburgo, cidade onde nasceu Mozart, capital
da música, reuniu-se o Conselho
Mundial de ex-presidentes e chefes de
governo, do qual faço parte, para discutir os problemas da atualidade, objeto de análise e de reflexão em todos
os fóruns.
A agenda começava por um tema
fascinante: examinar o direito de qualquer país, por maior potência que seja, de fazer intervenções militares com
pretextos que, no passado, chamavam
de guerra justa e, hoje, de preventiva
ou humanitária. Para mim, que tenho
por temperamento e por dever de
consciência ser pacifista, é mais fácil
pensar como Kant, na sua "Paz Perpétua", do que como Clausewitz em seu
"Da Guerra".
McNamara, secretário de Defesa de
Kennedy, que estava presente como
observador, deu-nos uma visão de como a sociedade americana se mobilizou para apoiar a guerra e, hoje, se distancia do clima que a fez possível.
Em Paris e Bruxelas, conversei com
políticos e intelectuais. Hoje não se
pode ser nem uma coisa nem outra
sem preocupar-se com a situação da
humanidade. Estamos todos condenados a, cada vez mais, viver juntos
esperanças e problemas.
Nos assuntos a dois, são sempre
inarredáveis as conversas e indagações sobre o Brasil, o fascínio da experiência brasileira de ter um governo de
esquerda, de um operário, sem tentações psicodélicas, fazendo coisas corretas, arrumando a casa e iniciando
uma etapa de crescimento. Lula passou a ser uma referência mundial e
desperta imensa curiosidade.
Todos reconhecem que o Brasil está
consolidando uma mudança silenciosa de seu modelo econômico, ficando
menos vulnerável às crises financeiras, aumentando suas exportações e
fugindo da dívida indexada em dólar.
Saindo da imagem do Brasil, o inexorável tema da Guerra do Iraque assume novas visões. Primeiro, o extremo esforço do governo americano de
libertar-se do grande abacaxi. Para isso, curva-se aos argumentos da Europa e busca sua adesão a um projeto
novo. Apressa-se em sair criando situações fantoches, como a de um governo tutelado e um Parlamento sem
legitimidade. Bush fez tudo para enfrentar as Nações Unidas e agora caiu
em seu colo, pedindo socorro desesperadamente. É claro que, com essas
perplexidades, todos acompanharam
a convenção do Partido Democrata,
que, ontem, homologou a candidatura Kerry.
A Europa mostra simpatia pelo candidato democrata, certa de que ele retomará uma política externa de cooperação e bom senso, respeitando a
opinião pública mundial, desprezada
por Bush. Para ser mais ridícula e difícil a situação, os generais recrutados
pelos americanos para reorganizar o
Exército são os mesmos de Saddam. O
Iraque vive um banho de sangue e nenhuma das motivações da guerra se
confirmou.
E o mais vergonhoso e hilariante é a
revelação de que os americanos estão
sem bala, motivo de sarcasmo da imprensa européia. Os Estados Unidos
desenvolveram uma tecnologia capaz
de fazer uniformes mudarem de cor,
soldados verem no escuro, tudo
"high-tech", mas não têm munição
para os fuzis M-16. Suas armas são
inúteis contra a guerrilha. Só contam
as balas que eles não têm e desesperadamente procuram em todos os fabricantes de cartucho.
Talvez os traficantes brasileiros possam informar melhor ao Pentágono
como lidar com esse mercado.
Noves fora, aqui na Europa é verão
e, no Sena, improvisam uma praia
com palmeiras, mas sem as garotas
bronzeadas de Ipanema, produto que
não se exporta.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Gabriela Wolthers: Dois mundos num só dia Próximo Texto: Frases
Índice
|