São Paulo, sexta-feira, 30 de julho de 2004

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JOSÉ SARNEY

Europa, verão e balas

Na Áustria, em Salzburgo, cidade onde nasceu Mozart, capital da música, reuniu-se o Conselho Mundial de ex-presidentes e chefes de governo, do qual faço parte, para discutir os problemas da atualidade, objeto de análise e de reflexão em todos os fóruns.
A agenda começava por um tema fascinante: examinar o direito de qualquer país, por maior potência que seja, de fazer intervenções militares com pretextos que, no passado, chamavam de guerra justa e, hoje, de preventiva ou humanitária. Para mim, que tenho por temperamento e por dever de consciência ser pacifista, é mais fácil pensar como Kant, na sua "Paz Perpétua", do que como Clausewitz em seu "Da Guerra".
McNamara, secretário de Defesa de Kennedy, que estava presente como observador, deu-nos uma visão de como a sociedade americana se mobilizou para apoiar a guerra e, hoje, se distancia do clima que a fez possível.
Em Paris e Bruxelas, conversei com políticos e intelectuais. Hoje não se pode ser nem uma coisa nem outra sem preocupar-se com a situação da humanidade. Estamos todos condenados a, cada vez mais, viver juntos esperanças e problemas.
Nos assuntos a dois, são sempre inarredáveis as conversas e indagações sobre o Brasil, o fascínio da experiência brasileira de ter um governo de esquerda, de um operário, sem tentações psicodélicas, fazendo coisas corretas, arrumando a casa e iniciando uma etapa de crescimento. Lula passou a ser uma referência mundial e desperta imensa curiosidade.
Todos reconhecem que o Brasil está consolidando uma mudança silenciosa de seu modelo econômico, ficando menos vulnerável às crises financeiras, aumentando suas exportações e fugindo da dívida indexada em dólar.
Saindo da imagem do Brasil, o inexorável tema da Guerra do Iraque assume novas visões. Primeiro, o extremo esforço do governo americano de libertar-se do grande abacaxi. Para isso, curva-se aos argumentos da Europa e busca sua adesão a um projeto novo. Apressa-se em sair criando situações fantoches, como a de um governo tutelado e um Parlamento sem legitimidade. Bush fez tudo para enfrentar as Nações Unidas e agora caiu em seu colo, pedindo socorro desesperadamente. É claro que, com essas perplexidades, todos acompanharam a convenção do Partido Democrata, que, ontem, homologou a candidatura Kerry.
A Europa mostra simpatia pelo candidato democrata, certa de que ele retomará uma política externa de cooperação e bom senso, respeitando a opinião pública mundial, desprezada por Bush. Para ser mais ridícula e difícil a situação, os generais recrutados pelos americanos para reorganizar o Exército são os mesmos de Saddam. O Iraque vive um banho de sangue e nenhuma das motivações da guerra se confirmou.
E o mais vergonhoso e hilariante é a revelação de que os americanos estão sem bala, motivo de sarcasmo da imprensa européia. Os Estados Unidos desenvolveram uma tecnologia capaz de fazer uniformes mudarem de cor, soldados verem no escuro, tudo "high-tech", mas não têm munição para os fuzis M-16. Suas armas são inúteis contra a guerrilha. Só contam as balas que eles não têm e desesperadamente procuram em todos os fabricantes de cartucho.
Talvez os traficantes brasileiros possam informar melhor ao Pentágono como lidar com esse mercado.
Noves fora, aqui na Europa é verão e, no Sena, improvisam uma praia com palmeiras, mas sem as garotas bronzeadas de Ipanema, produto que não se exporta.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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