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30 de agosto, Dia dos Desaparecidos
PHILIPPE-ANTOINE GAILLARD
Sempre há mortos, feridos e desaparecidos
num conflito armado. Entretanto, há algo que nunca morre: a memória
NOS ÚLTIMOS 30 anos, centenas de milhares de pessoas, a
maioria civis, desapareceram
-ou, para ser mais preciso, "foram
desaparecidas"- em conseqüência de
situações de conflito armado ou de
violência interna.
Hoje, milhares de famílias não sabem o destino de seus parentes e seres queridos. Na América Latina, por
exemplo, não foram poucos os países
afetados por essa dramática realidade, com exceção, talvez, da Costa Rica.
Diante desse problema, os governos da Argentina, do Chile, da Guatemala e do Peru elaboraram mecanismos oficiais, no começo da década de
1980 e início deste novo século, com a
finalidade de esclarecer, de forma fidedigna e detalhada, os episódios de
violência acontecidos em seus respectivos territórios, os quais causaram o trágico saldo de milhares de
mortos e desaparecidos.
Sem dúvida, a problemática das
pessoas desaparecidas tem sido, sempre, um tema central nesses processos de investigação que compõem um
complexo e difícil, porém necessário
caminho até a reconciliação nacional.
Na verdade, é muito difícil desenvolver um processo de reconciliação
em uma sociedade em que as águas
tão turvas do passado ainda molham
milhares de pessoas cujas vidas são
atormentadas diariamente pela violência, pelos horrores e pelos crimes
vividos por elas e por seus familiares
no passado.
É, portanto, uma ilusão falar de reconciliação sem levar em conta a sensibilidade e o sofrimento das pessoas
cuja memória se congelou em algum
momento a partir dos anos 70 em tantos lugares da América Latina.
A suspensão das hostilidades pela
força ou pelo inteligente, embora precário caminho da diplomacia e da negociação não significa obrigatoriamente a paz. Pelo menos, não para os
que perderam seus familiares, que viram suas casas destruídas, que sofreram com as torturas ou as terríveis
humilhações da violência sexual.
Para essas pessoas, parece urgente
e necessário que, paralelamente à
criação de instrumentos jurídicos como o Estatuto de Roma para a criação
do Tribunal Penal Internacional, os
Estados implementem o direito já
existente e façam com que ele seja
respeitado. O direito, antes de ser um
objeto de estudo para os círculos acadêmicos, tem de ser um instrumento
de aplicação efetiva, em terreno, já
que sua razão de ser, eficácia e credibilidade estão baseadas em seu impacto político e em sua capacidade de
proteger as pessoas.
Assim, o direito a conhecer a verdade, o direito a dar uma sepultura digna aos seres amados, permitindo que
as famílias vivam finalmente seu processo de dor, é um direito inalienável.
Essas pessoas também têm o direito a
que se faça justiça e a que os responsáveis por esses atos sejam levados a julgamento e, se considerados culpados,
a que sejam detidos e sancionados.
Há sempre mortos, feridos e desaparecidos num conflito armado. Sempre houve e sempre haverá. Com a
raiva e as armas se pode matar a quantos queira. Entretanto, há algo que
nunca morre: a memória.
A memória é o material mais invisível e resistente que existe: não pode
ser cortado nem pode ser alvejado;
simplesmente, porque não se vê.
Mesmo assim, está em todas as partes, ao redor de cada um de nós, cheia
de silêncio, de sofrimento calado, de
olhares ausentes e de sussurros.
Às vezes, podemos pressentir seu
cheiro e, então, a memória chega aos
ouvidos como o sussurro do silêncio.
Mesmo quando as coisas são esquecidas por décadas, seu cheiro pode ser
insuportável. Os mortos gritam, e os
desaparecidos gritam ainda mais forte. Parece que não há tumba que possa fazer calar a estes, que nem tumba
têm. Os gritos, por isso, ecoam no ar.
Por estes, o CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) investe toda sua energia em prevenir violações
ao direito humanitário durante os
conflitos armados. Ainda assim, lamentável e freqüentemente, o CICV
está reduzido a apenas herdar os traumas e a tratar das terríveis conseqüências da guerra, o que é sumamente frustrante.
Os familiares dos desaparecidos
são parte dessa memória. Alguns chegam a perdoar. Nenhum chega a esquecer. O CICV tampouco.
PHILIPPE-ANTOINE GAILLARD, 50, licenciado em letras
pela Universidade de Genebra (Suíça), é chefe da delegação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha para Bolívia, Equador e Peru. Foi delegado do CICV em países como
Iraque, Líbano, Croácia, Ruanda, Burundi, El Salvador, Colômbia, Uruguai, Paraguai, Chile, México, Macedônia e
Hungria.
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