São Paulo, terça, 30 de setembro de 1997.



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A demonização do "El Niño"


A demonização do "El Niño" pode fazer perder de vista o que ele é: uma variação natural do sistema climático
CARLOS A. NOBRE

O "El Niño" é um aquecimento das águas superficiais de vasta área do oceano Pacífico Equatorial Central e Oriental, com impactos no clima do globo. O atual é extraordinariamente intenso; pelo menos da mesma magnitude do ocorrido em 82/83, tido como o mais forte do século, que castigou o país com a seca do Nordeste e as enchentes de Santa Catarina, resultando em prejuízos de bilhões de dólares e na perda de centenas de vidas humanas.
Por que se fala tão mais deste "El Niño" em comparação aos anteriores, a ponto de o Congresso ter criado uma comissão para tratar do assunto e a imprensa discutir o tema diariamente?
A razão, além da intensidade excepcional, advém da capacidade hoje existente de monitorar e prever com antecedência de vários meses a evolução do "El Niño" e seus impactos climáticos em várias partes do globo, permitindo a implementação de medidas preventivas e mitigatórias dos efeitos adversos.
De acordo com as previsões climáticas, este "El Niño", talvez o mais intenso dos últimos 150 anos, deverá perdurar até os primeiros meses de 1998 antes de entrar em declínio.
A mídia tem tratado o fenômeno como "menino travesso", "El Diablo" e outras conotações que enfatizam só seus impactos adversos. Isso gera um ambiente psicossocial de "tragédia climática" anunciada, não sem exageros.
Surge apreensão nos lugares em que o "El Niño" causa mais impactos no clima. No sertão do Nordeste, a população já dá como certa uma grande seca no próximo "inverno" (período chuvoso); na região Sul, teme-se a repetição de inundações devastadoras.
No entanto, para o norte do Nordeste é o oceano Atlântico o principal responsável pela alta variabilidade do clima de ano para ano, e as condições nesse oceano só se definem no último trimestre. Grandes secas ocorrem quando as condições oceânicas são desfavoráveis às chuvas. De todo modo, previsões serão mais confiáveis só a partir de novembro e dezembro, por mais que o "El Niño" atual possa causar diminuição das chuvas do semi-árido.
No Sul, chuvas abundantes na primavera podem até ajudar a agricultura. Estudo de Moacir A. Berlato, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mostra que a produção de grãos no Estado em anos de "El Niño" cresce, devido ao aumento das chuvas. Para a agricultura gaúcha, a "vilã" é "La Niña" -fase oposta ao "El Niño", com águas mais frias no oceano Pacífico Equatorial-, quando as secas de verão provocam quebra de safras.
Feitas essas ressalvas, é possível perguntar como o conhecimento que temos sobre previsibilidade climática pode ser útil. Uma área de potencial aplicação é o calendário agrícola. A liberação de crédito para a agricultura é baseada nas épocas mais apropriadas para o plantio, que dependem do clima.
Entretanto, a política agrícola ainda não incorpora a capacidade que o país já tem para prever o clima com meses de antecedência em algumas regiões. É como se fosse preferível nunca arriscar nada e só usar o clima médio como guia, esperando o dia em que as previsões climáticas tenham 100% de acerto -o que nunca vai ocorrer.
Seguir essa política conservadora talvez seja cômodo; quando o clima real diferir muito da climatologia, como provavelmente será o caso para este "mega El Niño", sempre se poderá pôr a culpa na grande variabilidade natural -ainda tida como desígnio divino pelas populações das regiões mais pobres.
Pode ser a política mais cômoda, mas não é a melhor a longo prazo. Adequar o calendário agrícola aos efeitos mais prováveis do "El Niño" pode significar enormes ganhos para a agricultura e mitigação de problemas decorrentes da quebra de safras durante as secas do Nordeste, como a fome e o êxodo rural.
A excessiva demonização do "El Niño" pode fazer perder de vista o que ele é na realidade: ainda que espetacular por seus efeitos, uma variação absolutamente natural do sistema climático do planeta, que existe há dezenas de milhares de anos e continuará a existir.
Longe de considerá-lo um "El Diablo", o melhor é aprender a conviver pacificamente com ele. Ainda mais quando a ciência permite uma razoável previsão do fenômeno e de seus efeitos. É o que se espera de uma sociedade que usa com inteligência o conhecimento científico disponível e que sabe observar a natureza e conviver com ela.

Carlos A. Nobre, 46, é doutor em meteorologia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA) e pesquisador-titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.



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