São Paulo, quarta-feira, 30 de outubro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Faz favor

RIO DE JANEIRO - Nos bondes de antigamente, a figura máxima, autoridade suprema, era a do cobrador. Equilibrava-se precariamente nos estribos superlotados, vestia uma farda de casimira com colete e infinitos bolsos. Sua função -como o nome indicava- era cobrar. Cobrar o preço das passagens.
Cada cobrador tinha o seu método, mas havia um denominador comum entre eles: era o polido e obrigatório "faz favor" com que ele se dirigia aos passageiros, sobretudo àqueles que fingiam não vê-lo ou alegavam já ter pago a viagem.
Estes últimos também tinham a sua técnica: abriam o jornal e mergulhavam a cara entre as páginas. Lá vinha o cobrador, fazendo aquele barulhinho com as moedas e dizendo: "Faz favor". O cara tirava a cara do jornal, olhava espantado para o cobrador e reclamava: "Outra vez?". O truque geralmente colava, era impossível ao cobrador guardar a cara dos caras que já haviam pago.
Lembro os cobradores dos bondes porque vamos entrar em tempos de cobranças, quando todos seremos cobradores, uns mais, outros menos. A maioria cobrará saúde, emprego, salário, educação, aposentadoria, justiça social, distribuição de renda, soberania nacional. Essas coisas que nos foram prometidas.
Tudo bem, será parte do jogo, ou melhor, da viagem do grande bonde chamado Brasil nos trilhos e nas ruas da vida pública.
Mas haverá cobradores outros, com a mão estendida fazendo aquele barulhinho das moedas e dizendo: "Faz favor". Os passageiros que agora estão embarcando no bonde nacional terão de pagar a passagem, honestamente, sem estrilar.
Teme-se, por incontáveis motivos, alguns históricos, outros de circunstância, que um outro passageiro adote a técnica da cara-de-pau e, além de não pagar o que deve, ainda reclame: "Outra vez?".


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