São Paulo, sábado, 30 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma derrota de Bush enfraqueceria o combate ao terrorismo?

SIM

Bush e o terror

DENIS LERRER ROSENFIELD

O mundo mudou. Após os atentados às torres gêmeas do World Trade Center, o século 21 se inaugurou sob a égide de uma nova forma de violência: o terror islâmico. Os dados das guerras convencionais foram brutalmente alterados, exigindo um novo enfoque seja das relações diplomáticas, seja das militares, com especial atenção aos serviços de inteligência. O inimigo já não se apresenta sob uma forma visível, geograficamente localizável, salvo em suas manifestações violentas, quando da explosão de edifícios, hotéis, ônibus ou em decapitações potencializadas pelos meios de comunicação.
O terror islâmico, também dito terror global, é significativamente diferente de outras formas de terror, pois seu alvo é propriamente inatingível, já que procura, de uma forma dogmática e religiosa, a pura e simples submissão de todos os que não compartilham de sua visão particular do islamismo. Ele visa à destruição de outras culturas e religiões, seja o catolicismo, o protestantismo, o judaísmo, o budismo e, amanhã -por que não?-, outras formas tolerantes da religião muçulmana. O propósito dessa forma de terror se situa fora da esfera da política, isto é, da razão, do diálogo e da negociação. Não há interlocutor possível para esse tipo de "irrazão", pois os seus agentes procuram estabelecer tão-somente uma luta de vida ou morte.
Quando da eleição de Bush, o presidente tinha uma doutrina de segurança nacional voltada para a proteção do solo americano via construção de um escudo que protegeria os EUA de mísseis interbalísticos. O inimigo potencial era, então, a China. Com a irrupção do terror islâmico, os dados da questão se alteraram completamente, pois um pequeno grupo de suicidas mostrou que poderia, com aviões civis, produzir uma imensa destruição, que abalou, simbolicamente, a nação americana.
Nesse momento, houve uma enorme mutação da doutrina estratégica americana. O novo presidente entendeu que não poderia negociar com tal tipo de inimigo, partindo para uma ação que, naquele então, contou com a aprovação da ONU. O Afeganistão foi um alvo particularmente propício para a reação americana, pois ele encarnava um Estado terrorista, de cunho totalitário, governado pelos talebans, aliados de Bin Laden e membros de sua seita. Nesse país foi possível uma ação militar exitosa, entre outras razões, pelo fato de os terroristas serem geograficamente localizáveis. Era como se os moldes da guerra clássica se reproduzissem. Ademais, a população afegã não suportava mais aquele jugo e os EUA contaram com a inestimável ajuda militar das tropas do general Massud (assassinado pelos talebans semanas antes), com longa experiência de combate aos soviéticos.
Ora, o fenômeno terrorista se mostrou muito mais complexo, porém Bush e sua equipe extraíram três lições: a) trata-se de uma guerra de outro tipo, em que contam os serviços de inteligência, aliados às operações militares e policiais; b) o terror islâmico deve ser combatido sem tréguas, não cabendo aqui nenhuma negociação; c) ocorreu uma reconfiguração da geopolítica internacional, em que novos aliados, como o Paquistão, ou antigos, como o Egito, têm uma importância fundamental.
Nessa nova configuração, aliados como a França e a Alemanha perdem importância, pois são expressões de um mundo que não mais existe, o mundo posterior à Segunda Guerra e à Guerra Fria. A Europa não só está pacificada como se organizou de modo supranacional, abandonando a sua histórica política de guerras incessantes. Logo, o presidente Bush se volta aos países islâmicos que não compactuam com o terror islâmico, capazes de enfrentá-lo.
Os noticiários têm dado grande destaque ao Iraque e pequeno destaque ao Afeganistão. Ao primeiro, pois os erros americanos na pacificação do país têm se multiplicado, além de sua justificativa de combate ao terror ter desaparecido, pela ausência de provas de vínculos entre Saddam e Bin Laden. Nesse sentido, pode-se dizer que Bush terminou por retroalimentar o terrorismo, ao lhe oferecer espaço de ação e de recrutamento de novos militantes. Não havia nesse país uma identificação geográfica entre o terror e um Estado nacional. Ele errou o alvo e tem sido cobrado por isso. Entretanto o sucesso da operação dos EUA/ONU no Afeganistão mostra que é possível não só combater o terror como reconstruir um país ferozmente dividido por lutas tribais. As suas recentes eleições são uma amostra de como novas formas de exercício do poder podem ser estabelecidas em um país que teria tudo para não as construir.
Bush entendeu, melhor do que Kerry, que um novo mundo exige enfrentar os seus desafios de uma outra maneira. Não são vagas palavras sobre o multilateralismo e o social que farão com que terroristas milionários recuem em seu projeto escatológico de instaurar um poder teológico e absoluto.


Denis Lerrer Rosenfield, 53, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da UFRGS.


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