São Paulo, sábado, 30 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma derrota de Bush enfraqueceria o combate ao terrorismo?

NÃO

Guerra à guerra

EMIR SADER

Em qualquer eleição se coloca o tema da diferença entre os candidatos -se elas existem, se são significativas. Em qualquer lugar, por exemplo, quem faz reforma tributária para financiar políticas sociais é de esquerda, quem promete reduzir impostos para os ricos em detrimento das políticas sociais é de direita. Kerry não é de esquerda, mas promete retroceder na política de Bush de diminuir os impostos, a fim de ter mais recursos para o social. Bush, como todo político de direita, tenta ganhar simpatias da classe média reduzindo impostos. Pode-se esperar um pouco mais de recursos para os programas de saúde pública e de educação, mas subordinados ao objetivo de estabilidade fiscal, que os democratas acusam Bush de ter colocado em risco.
A lista de temas em que os dois concordam é enorme: o papel do banco central estadunidense, o papel e o orçamento da CIA e de outras agências de inteligência, o desarmamento nuclear, a redução do orçamento militar, o papel e as políticas do Banco Mundial, do FMI e da OMC, a guerra às drogas, a política florestal.
Entre os temas coincidentes estão os de política internacional, especialmente a política de tentar resolver os conflitos mediante a violência e a guerra, reivindicando para os EUA o direito de atacar preventivamente quem eles considerem que representa risco para si. Ambos afirmam que manterão e até intensificarão o engajamento militar dos EUA no Iraque; ambos apóiam a política de massacre de Sharon contra os palestinos -para falar apenas de dois epicentros da "guerra infinita". Kerry diz que romperá o unilateralismo, consultando os aliados, mas, ao manter o direito unilateral dos EUA de atacar preventivamente, não deixa lugar efetivo para consultas, cedendo às pressões de Bush, que o acusava de "consultar os franceses antes de se defenderem dos terroristas".
A eventual derrota de Bush -e, portanto, a vitória de Kerry- representaria mais violência e terror em escala mundial -levando em conta que ambos os lados em conflito podem ser considerados igualmente agentes de ações de terror. Uma vitória de Bush -seja com maioria ou com mais votos no Colégio Eleitoral- referendaria a política belicista de seu governo. Podemos nos perguntar, depois da aplicação por três anos dessa política, se o mundo é um lugar mais ou menos seguro desde então, se as ações de terror aumentaram ou diminuíram, se as pessoas se sentem mais ou menos seguras, se estamos mais perto ou mais longe da paz.
Quem teme, como diz a propaganda de Bush, que sua derrota debilite a luta contra o que chamam de "terrorismo" -outro raciocínio típico da direita, que busca combater os problemas sociais com repressão- considera que é com mais violência, com mais tropas, com mais bombardeios, com mais massacres que se consegue triunfar. Esse é o caminho seguido por Bush e que tem trazido mais adesões à resistência violenta contra a invasão do Iraque. Cada ação violenta tem encontrado uma reação contrária do mesmo tipo e a escalada do terror só tem aumentado, não apenas no Iraque, como na Palestina.
Como se combate essa escalada de ações de terror? Atacando suas raízes. No caso da Palestina, com a retirada das tropas israelenses de ocupação e o reconhecimento do direito à existência do Estado palestino. Nenhum outro caminho pode levar à pacificação. No caso do Iraque, com a retirada das tropas de ocupação estadunidenses e de outros países e o reconhecimento do direito dos iraquianos de decidirem seu próprio destino.
Se uma vitória de Kerry não representa avançar nessa direção, um triunfo de Bush representa certamente avançar na direção oposta -a de consolidar as ocupações militares e de aumentar a repressão à resistência dos que lutam contra ela. A derrota de Bush pode ser o primeiro caso de uma solução alternativa àquela imperante. A vitória de Bush representará o referendo à política agressiva que caracteriza o seu governo.
Mas a construção de uma nova ordem, mais justa, centrada na paz e na resolução negociada dos conflitos, está longe do que qualquer um dos dois que triunfe fará. Ela supõe o fortalecimento da ONU, com a sua democratização, mas também com a votação de resoluções que punam a invasão do Iraque, que façam valer a resolução da ONU pela criação de um Estado palestino. Supõe a quebra da hegemonia unipolar que o domínio imperial estadunidense impõe ao mundo, superando igualmente a polarização Bush/Bin Laden ou fundamentalismo estadunidense versus fundamentalismo islâmico e a formação dos instrumentos e dos espaços para a criação de um outro mundo possível -solidário, humanista, multipolar, diverso e fundado no resgate social do hemisfério Sul, a começar pela África.
Só assim pode-se garantir a paz e o fim da escalada de terror que assola o mundo e que tem nas políticas de Bush um multiplicador, e não um antídoto.


Emir Sader, 61, é professor de sociologia da USP e da Uerj, onde coordena o Laboratório de Políticas Públicas.


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