São Paulo, terça-feira, 30 de outubro de 2007

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MARCOS NOBRE

Um país normal

"BARCELONA" é uma revista de humor argentina que surgiu em 2003. Sobre as eleições, saiu-se com o seguinte: "Que barbaridade esse povo que valoriza mais os direitos humanos do que o preço do tomate".
Porque a campanha da oposição não foi muito além de discutir o preço dos tomates e das batatas. E o governo de Néstor Kirchner teve como uma de suas prioridades a reabertura dos processos para apurar crimes cometidos durante a ditadura militar.
Não que Cristina Kirchner tenha dito muita coisa. Fez uma campanha minimalista. Deu apenas uma entrevista coletiva e fez um giro internacional em plena campanha.
Foram além dos legumes apenas a cobertura e as análises da campanha eleitoral. Mas, no geral, apresentaram o favoritismo de Cristina Kirchner como se fosse um defeito essencial do povo argentino: decidir pela continuidade das políticas implantadas desde 2003.
O analista político James Neilson resumiu esse estado de coisas um tanto surreal: "O eleitorado decidiu há muito tempo que não está interessado em mudar e, por isso, se nega a deixar-se influir por detalhes como uma corrupção galopante, inflação em alta e uma crise energética que, com certeza, se agravará. Esses e outros temas, em um país normal, seriam mais do que suficientes para garantir a derrota do governo".
É difícil imaginar o que possa ser um "país normal". Enumerar uma longa lista de problemas -e eles não faltam à Argentina- não serve de explicação para o que quer que seja, muito menos para a eleição de Cristina Kirchner.
Há razões de sobra para criticar o governo Kirchner. Mas o fato é que os governos de Duhalde e de Néstor Kirchner conseguiram o que ninguém se arriscava a prever: que a Argentina fosse se recuperar da hecatombe da década Menem. O curioso é que as análises mencionem isso como se não tivessem feito mais do que sua obrigação.
A pergunta seria então: por que temas tão decisivos para o futuro da Argentina não foram discutidos a fundo durante a campanha? Pois é sabido que, para garantir a continuidade, Cristina Kirchner terá mesmo de mudar: será obrigada a fazer um profundo ajuste fiscal, controlar a inflação e encaminhar a solução da crise energética. Terá de colocar a economia argentina de volta no cenário internacional.
O eleitorado argentino considerou que um governo que conseguiu a extraordinária recuperação dos últimos anos é o mais bem preparado para enfrentar esses próximos desafios. Se vai conseguir ou não, só será possível saber nos próximos quatro anos. Porque "país normal" não existe em lugar nenhum do mundo.


MARCOS NOBRE escreve às terças-feiras nesta coluna.


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