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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O outro islã

BETTY MILAN

"De que forma funciona o demoníaco hoje? O que se passa na alma de um homem que, sem razão, a sangue frio, escolhe o mal e visa o crime absoluto? O que, neste começo de século, faz com que a abjeção se torne desejo e destino? Quem são estes novos possessos que pensam que tudo é permitido, não porque Deus não exista, mas precisamente porque ele existe e a sua existência os enlouquece?"
A questão é do livro de Bernard Henri Levy sobre o jornalista americano Daniel Pearl, sequestrado e decapitado em 2002 pelos "loucos de Deus", na cidade de Karachi. Motivada por essa questão, e com o intuito de saber o que tem a loucura dos novos possessos a ver com a religião e a cultura islâmicas, fui ao Marrocos, país onde o turista aprendiz ainda pode circular com certa liberdade.
No aeroporto de Paris, um sinal de alerta e os passageiros do vôo são obrigados a esperar duas horas, até que o dono da mala abandonada surja à procura da mala perdida. Passado o susto, começa o "check-in" e a mulher do lado comenta que é preciso ter coragem para viajar. Concordo.
No aeroporto de Marrakech, o exame do passaporte é interminável e eu me digo que o século 20 acabou há apenas três anos e o turista de hoje mais nada tem a ver com o do século passado. Precisa atravessar a barreira da desconfiança alheia e não se entregar à própria. Do contrário, não viaja. Seja ele quem for, pelo simples fato de viajar, dá um testemunho de coragem e de interesse pelo outro. Só por isso pode ser visto como um pacifista. O milênio dos "loucos de Deus" e dos kamikazes conferiu-lhe uma imagem nova -à qual poderá ou não fazer jus, dependendo da sua relação com o país visitado.
No Marrocos ela pode ser ótima, porque, além de versados nas línguas ocidentais, os nativos são particularmente abertos e o visitante terá mais de uma ocasião de conhecer a cultura islâmica e dissociá-la da "cultura dos fanáticos". Visitando, por exemplo, em Marrakech, os túmulos da dinastia saadiana, onde o guia indica três janelas esculpidas e explica que a religião islâmica aparece representada juntamente com a judaica e a cristã. "Porque as três religiões são indissociáveis. Há um só Deus, Alá, mas os muçulmanos tanto acreditam em Maomé, o profeta, quanto nos mensageiros que o precederam, levando ao monoteísmo: Abraão, Moisés, Jesus Cristo."


O terrorismo ofusca a luz do islã, que todo dia ensina os fiéis a não esquecerem o sol e as estrelas
A frase do guia bastaria para afirmar que a religião dos "loucos de Deus" é a do ódio, e não a do islã, que é inclusivo. A representação da estrela de Davi nos monumentos das diferentes dinastias e o convívio pacífico dos muçulmanos, dos judeus e dos cristãos em Marrakech -como, no passado, em Córdoba, Sevilha e Granada- são a prova disso.
Por sua relação com a morte -a crença em que ela é a porta do paraíso-, o muçulmano está mais predisposto a se tornar um kamikaze do que o judeu ou o cristão, mas não é a religião que explica essa conversão funesta, e sim a política. Tanto a de quem faz do World Trade Center duas torres crematórias, quanto a dos que fizeram a Guerra do Iraque.
O terrorismo ofusca a luz do islã, que todo dia ensina os fiéis a não esquecerem o sol e as estrelas, rezando quando a voz do "muezzin" anuncia, pelo alto-falante, a aurora e a noite de sono por vir. Uma luz que ensina a desacreditar o "time is money" e a privilegiar o encontro, como fez o chofer de táxi que reduziu espontaneamente o preço da corrida para a metade, simplesmente porque pedi que ele traduzisse para o francês as frases do "muezzin". "Não é mais 80, é 40", respondeu Abdul, já parando o carro e vertendo o "Alla uacbá" para "Dieu est grand": Deus é grande.
No "suque", o negócio pode levar horas. Tanto para que o negociante leve a melhor, quanto para que entre ele e o comprador se estabeleça uma conversa. Sem conversa, o negócio é inconcebível.
Os ensinamentos da cultura islâmica são muitos, e muitos, por outro lado, os que o ocidental pode introduzir no Oriente. Pelo simples fato, por exemplo, de que sua conduta contraria a idéia de que o homem é superior à mulher.
A política do pacifismo requer a troca entre as culturas. O progresso tanto depende disso quanto do avanço tecnológico -não pode haver progresso verdadeiro enquanto a guerra das civilizações perdurar. A palavra civilização sempre foi, é e será sinônimo da palavra convivência, que resultou nos frutos mais viçosos, coloridos e duradouros, como a cidade-oásis de Marrakech, onde o "suque" coteja o bairro judeu, e a arquitetura islâmica esposa o desenho "art decô", no legendário Mamúnia, o hotel de Winston Churchill, construído no jardim de oliveiras do príncipe Mamoun.
Pelos tantos encontros que ela propicia, a viagem de Lula ao Oriente Médio faz a palavra civilização ressoar. Se o comércio entre o Brasil e o Oriente Médio se desenvolver, será um sucesso. Se a idéia de que se deve taxar o comércio de armas para combater a fome no mundo se impuser, a ida do presidente terá sido gloriosa. A paz é sempre a maior das missões presidenciais.


Betty Milan, escritora e psicanalista, é autora de, entre outros livros, "A Paixão de Lia".


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