São Paulo, sexta-feira, 30 de novembro de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Infecção pelo HIV/Aids: sucessos e insucessos

VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK

Temos neste ano alguns dados muito auspiciosos que, na nossa opinião, são muito significativos no combate à Aids

TEMOS NESTE ano alguns dados muito auspiciosos que, na nossa opinião, são muito significativos no combate à Aids. Temos, também, como sempre, fatos que não nos deixam tão otimistas. Vamos primeiro dar as boas notícias.
Os inibidores da integrase, a enzima que integra a cópia DNA do RNA viral no nosso genoma, chegaram ao uso clínico experimental e logo estarão na rotina assistencial. Com a inibição da transcriptase reversa, proteases e integrase, agiremos mais radicalmente contra o vírus, limitando a sua proliferação.
Além dos inibidores de fusão, inibidores da ligação do vírus ao receptor CCR5 também atingem nível clínico, atacando outro ponto crítico da penetração do vírus nas células-alvo.
A parte problemática desses itens vai situar-se no preço. As drogas novas são caras -quanto mais novas, mais caras- e ficarão necessárias para os muitos pacientes que perderam a resposta a fármacos mais antigos.
Incidentalmente, consideramos a quebra de patente do anti-retroviral Efavirenz uma faca de dois gumes. Se precisamos viabilizar nosso generoso e eficiente programa de combate à infecção pelo HIV e, por isso, é essencial manter os gastos com ele sob controle, igualmente é verdade que quebrar patente implica algum grau de risco.
Sem discutir moralidade ou fatores desse tipo, o fato é que, se as multinacionais não quiserem licenciar no Brasil os remédios que produzem, não poderemos fazer absolutamente nada para obrigá-las.
Preparações novas não são produzíveis nos laboratórios farmacêuticos nacionais, incluindo os estatais. Países como a Índia, a China ou a Coréia do Sul, que investiram em indústria química de ponta, podem tentar, mas, aqui, isso é simplesmente inviável.
Dirão os senhores que o Brasil é um grande mercado para os anti-retrovirais. Pode ser verdade, mas, se uma empresa farmacêutica resolver morder a bala, vamos descobrir mais uma vez que nosso governo não pode tudo que pensa que pode.
Voltando à parte animadora, a epidemia da infecção pelo HIV não explodiu na Índia como poderia ter acontecido. Fatores sociais e culturais aí são diferentes dos da África. Por outro lado, não se pode negar a expansão da epidemia na Índia, na Ucrânia, na Rússia e nos países da Europa Oriental -se não foi catastrófica, continua sendo assustadora, como outrossim é a difusão nas camadas mais pobres da população latino-americana e até norte-americana.
Trabalhos educativos continuam sendo o único método limitador, por enquanto, e educação para a saúde pressupõe a de base -e, nisso, os progressos foram singelos.
Dispomos de dados brasileiros sugerindo alguma melhora, mas discreta, quanto à quantidade de infectados. O próprio tratamento limita a disseminação da infecção: pessoas com cargas virais inferiores a 1.500 genomas/ml são muito menos contaminantes (mas não deixam de sê-lo) do que as com cargas virais mais altas.
A pior notícia deste ano se refere à vacina: uma tentativa, mais uma, não se mostrou eficaz. Vacinação profilática ou mesmo terapêutica contra o HIV até agora não existe. Tentativas vão continuar sendo feitas, mas nos preocupa o simples fato biológico de não existir imunizante valioso contra retrovírus em nenhuma espécie, o que sugere que deve ser muito difícil conseguir alguma coisa desse tipo.
A descoberta do RNA interferente é uma promessa para que, no futuro, algo assim seja usado para prevenir a infecção pelo HIV. No entanto, a distância entre o fenômeno biológico demonstrado e seu emprego clínico é imensa: só imaginar como colocar o RNA interferente dentro de células é de enorme complexidade. Preocupamo-nos com a impressão leiga de que uma descoberta científica dá frutos imediatos -em medicina, isso definitivamente não é assim.
No Brasil, nos entusiasma o fato de que nosso programa de assistência aos pacientes com HIV/Aids continue funcionando tão bem; é quase inédito, neste país, que um plano de longo prazo, tocado por governos politicamente divergentes, tenha se mantido e expandido de maneira adequada com a cobertura que alcançou.
Isso nos faz perguntar por que em outras situações clínicas mais comuns não há iniciativas tão bem organizadas e articuladas. Mas é aquela história, se todos os componentes da área da saúde imitassem o nosso sistema de atenção aos acometidos de HIV/Aids, o Brasil seria a Suécia.


VICENTE AMATO NETO, 80, médico especialista em clínica de doenças infecciosas e parasitárias, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP.
JACYR PASTERNAK, 67, médico especialista em clínica de doenças infecciosas e parasitárias, é doutor em medicina pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

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