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TENDÊNCIAS/DEBATES
Infecção pelo HIV/Aids: sucessos e insucessos
VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK
Temos neste ano alguns dados muito auspiciosos que, na nossa opinião, são muito significativos
no combate à Aids
TEMOS NESTE ano alguns dados
muito auspiciosos que, na nossa
opinião, são muito significativos
no combate à Aids. Temos, também,
como sempre, fatos que não nos deixam tão otimistas. Vamos primeiro
dar as boas notícias.
Os inibidores da integrase, a enzima que integra a cópia DNA do RNA
viral no nosso genoma, chegaram ao
uso clínico experimental e logo estarão na rotina assistencial. Com a inibição da transcriptase reversa, proteases e integrase, agiremos mais radicalmente contra o vírus, limitando
a sua proliferação.
Além dos inibidores de fusão, inibidores da ligação do vírus ao receptor
CCR5 também atingem nível clínico,
atacando outro ponto crítico da penetração do vírus nas células-alvo.
A parte problemática desses itens
vai situar-se no preço. As drogas novas são caras -quanto mais novas,
mais caras- e ficarão necessárias para os muitos pacientes que perderam
a resposta a fármacos mais antigos.
Incidentalmente, consideramos a
quebra de patente do anti-retroviral
Efavirenz uma faca de dois gumes. Se
precisamos viabilizar nosso generoso
e eficiente programa de combate à infecção pelo HIV e, por isso, é essencial
manter os gastos com ele sob controle, igualmente é verdade que quebrar
patente implica algum grau de risco.
Sem discutir moralidade ou fatores
desse tipo, o fato é que, se as multinacionais não quiserem licenciar no
Brasil os remédios que produzem,
não poderemos fazer absolutamente
nada para obrigá-las.
Preparações novas não são produzíveis nos laboratórios farmacêuticos
nacionais, incluindo os estatais. Países como a Índia, a China ou a Coréia
do Sul, que investiram em indústria
química de ponta, podem tentar, mas,
aqui, isso é simplesmente inviável.
Dirão os senhores que o Brasil é um
grande mercado para os anti-retrovirais. Pode ser verdade, mas, se uma
empresa farmacêutica resolver morder a bala, vamos descobrir mais uma
vez que nosso governo não pode tudo
que pensa que pode.
Voltando à parte animadora, a epidemia da infecção pelo HIV não explodiu na Índia como poderia ter
acontecido. Fatores sociais e culturais aí são diferentes dos da África.
Por outro lado, não se pode negar a
expansão da epidemia na Índia, na
Ucrânia, na Rússia e nos países da Europa Oriental -se não foi catastrófica, continua sendo assustadora, como
outrossim é a difusão nas camadas
mais pobres da população latino-americana e até norte-americana.
Trabalhos educativos continuam
sendo o único método limitador, por
enquanto, e educação para a saúde
pressupõe a de base -e, nisso, os progressos foram singelos.
Dispomos de dados brasileiros sugerindo alguma melhora, mas discreta, quanto à quantidade de infectados.
O próprio tratamento limita a disseminação da infecção: pessoas com
cargas virais inferiores a 1.500 genomas/ml são muito menos contaminantes (mas não deixam de sê-lo) do
que as com cargas virais mais altas.
A pior notícia deste ano se refere à
vacina: uma tentativa, mais uma, não
se mostrou eficaz. Vacinação profilática ou mesmo terapêutica contra o
HIV até agora não existe. Tentativas
vão continuar sendo feitas, mas nos
preocupa o simples fato biológico de
não existir imunizante valioso contra
retrovírus em nenhuma espécie, o
que sugere que deve ser muito difícil
conseguir alguma coisa desse tipo.
A descoberta do RNA interferente é
uma promessa para que, no futuro, algo assim seja usado para prevenir a
infecção pelo HIV. No entanto, a distância entre o fenômeno biológico demonstrado e seu emprego clínico é
imensa: só imaginar como colocar o
RNA interferente dentro de células é
de enorme complexidade. Preocupamo-nos com a impressão leiga de que
uma descoberta científica dá frutos
imediatos -em medicina, isso definitivamente não é assim.
No Brasil, nos entusiasma o fato de
que nosso programa de assistência
aos pacientes com HIV/Aids continue funcionando tão bem; é quase
inédito, neste país, que um plano de
longo prazo, tocado por governos politicamente divergentes, tenha se
mantido e expandido de maneira adequada com a cobertura que alcançou.
Isso nos faz perguntar por que em
outras situações clínicas mais comuns não há iniciativas tão bem organizadas e articuladas. Mas é aquela
história, se todos os componentes da
área da saúde imitassem o nosso sistema de atenção aos acometidos de
HIV/Aids, o Brasil seria a Suécia.
VICENTE AMATO NETO, 80, médico especialista em clínica de doenças infecciosas e parasitárias, é professor
emérito da Faculdade de Medicina da USP.
JACYR PASTERNAK, 67, médico especialista em clínica
de doenças infecciosas e parasitárias, é doutor em medicina pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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