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Pará: Justiça perversa, omissão e crime
ROBERTO DELMANTO JUNIOR
O Código Penal viabiliza a responsabilização criminal de autoridades públicas que se omitem em evitar
a tortura e o estupro
O MUNDO inteiro ficou chocado
com a reportagem exibida pela
CNN repercutindo a denúncia
veiculada pela mídia brasileira sobre
o perverso sistema policial e judiciário do Estado do Pará. E não é por menos. Impossível haver realidade mais
grotesca: uma adolescente de aproximadamente 15 anos, apreendida por
tentativa de furto, foi jogada em uma
cela superlotada de homens, sendo
abusada sexualmente por 26 dias.
A atrocidade praticada pelos detentos, movidos por instintos sexuais reprimidos pela privação da companhia
feminina, acrescida de perversões das
mais terríveis (a menina foi queimada
com cigarro em regiões de seu corpo,
teve o cabelo cortado e sofreu hematomas, por sorte não engravidando),
não é menos repugnante da praticada
por aqueles que a jogaram e a mantiveram naquele calabouço medieval.
Os delegados de polícia conhecem
muito bem as delegacias em que trabalham, bem como os juízes e promotores de cidades pequenas como
Abaetetuba -até porque estes têm o
dever legal, previsto nos artigos 66,
VI, e 68 da Lei de Execução Penal, de
fiscalizar mensalmente as cadeias.
Logo após o episódio ser revelado,
começou o "jogo de empurra", típico
dos que buscam justificar omissões,
ora alegando desconhecimento dos
fatos, ora que a culpa é do "sistema".
O delegado-geral da polícia do Estado, em audiência no Senado, em vez
de esclarecer os fatos, insinuou que
seria a adolescente a culpada pelos estupros e torturas que sofrera, dizendo
que ela deveria ter uma "debilidade
mental" por não afirmar ser menor e
tampouco denunciar os abusos!
Como se a autoridade policial não
tivesse, ela, o dever de averiguar a
identidade e a qualificação da pessoa
presa, bem como o de vigiar o que
acontece na cadeia que administra.
Como se os delegados não soubessem que o inevitável ocorreria ao jogar essa menina no meio daqueles
que se mostraram verdadeiras feras
enjauladas.
Depois disso, o delegado-geral pediu exoneração, a qual foi aceita, tendo a governadora do Pará, Ana Júlia
Carepa (PT), agradecido "pelos serviços prestados [pelo delegado] com
ética e dedicação" (Folha, 29/11).
Furtando-se à responsabilidade,
um dos delegados envolvidos declarou à mídia que a culpa não é deles,
mas, sim, do sistema carcerário e,
mais uma vez, da menor, que não teria declarado a sua idade.
A delegada de polícia responsável
pela prisão foi flagrada pela mídia
afirmando que sabia da condição ilegal de manter uma mulher com homens, chegando a afirmar que não teria controle do que é humano ou desumano diante da precariedade da
delegacia.
A juíza da comarca, ao ser informada, cerca de longos dez dias após a
prisão com homens, teria negado o
pedido de transferência da adolescente, que ficou 26 dias nessas condições! E o promotor de Justiça da comarca, que certamente se manifestou
nos autos desse pedido de transferência? Da parte deles, por enquanto, há
inconfessável silêncio.
A governadora do Pará atribuiu a
responsabilidade do ocorrido aos governos anteriores, por estar no cargo
há somente 11 meses ("Tendências e
Debates", 28/11).
Buscando minimizar o estrago político, bem como prevenir, quiçá,
eventual pedido de intervenção do
governo federal com base no artigo
34, VII, b, da Constituição da República para assegurar a observância
dos "direitos da pessoa humana", baixou decreto proibindo o que já é proibido pelo artigo 82 da Lei de Execução Penal: mulher não pode ficar presa com homem! Anunciou, ainda, a
demolição da malfadada carceragem,
como se tal conduta simbólica apagasse o passado recente e, pior, como
se o Estado do Pará possuísse vagas
sobrando para presos, vindo a agravar
ainda mais a superlotação carcerária.
Demagogia à parte, gostaríamos de
ressaltar que o artigo 13, parágrafo 2º,
a, do Código Penal viabiliza a responsabilização criminal das autoridades
públicas de escalões superiores que,
tendo consciência da ilegalidade e o
dever de agir para fazê-la cessar, omitem-se em evitar a tortura, o estupro
e o atentado violento ao pudor.
Diz esse dispositivo: "A omissão é
penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o
resultado. O dever de agir incumbe a
quem: a) tenha por lei obrigação de
cuidado, proteção ou vigilância".
Resta a triste constatação de que
muitas mulheres no Pará foram submetidas à mesma situação e estariam,
agora, sendo transferidas para o único presídio feminino do Estado, o que
comprova que o caso dessa jovem não
foi um episódio isolado, mas um retrato de uma contínua e institucionalizada violação dos direitos humanos.
ROBERTO DELMANTO JUNIOR, 38, mestre e doutor em
direito pela USP, é advogado criminalista. É co-autor de
"Código Penal Comentado", entre outras obras.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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