São Paulo, quinta-feira, 30 de dezembro de 2004

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Beira de mar, lugar comum

A "fúria da natureza" é, obviamente, uma expressão sem sentido. Terremotos e tsunamis são ocorrências normais do ponto de vista da dinâmica da natureza. Esses eventos são "desastres" apenas da perspectiva da humanidade. Para nós, a magnitude desses "desastres naturais" mede-se pela quantidade de vítimas e pela destruição de estruturas construídas.
O maremoto com epicentro no norte de Sumatra, que atingiu toda a bacia do Índico, já ganhou um lugar na lista dos piores "desastres naturais" registrados. Os seus efeitos trágicos não decorrem, no essencial, da energia liberada pelo abalo sísmico, mas da densidade das implantações humanas nas planícies costeiras. As terras baixas, na orla litorânea dos continentes e ilhas, abrigam mais da metade da humanidade. Em contraste, nas terras altas, em cotas superiores a mil metros, residem apenas cerca de 7% da população mundial.
A apropriação desigual do relevo reflete, de modo peculiar, a história das técnicas. Desde os primórdios, as enseadas abrigadas e a foz oceânica dos rios serviram de sítios privilegiados para as implantações humanas. As principais cidades do Império Romano situavam-se na orla do Mediterrâneo, na Europa, na África e na Ásia Menor, pois os custos de transporte terrestre a longa distância eram proibitivos.
Os mares e rios formaram, durante milênios, as "estradas líquidas" dos intercâmbios humanos. As terras altas, encaixadas entre cordilheiras, permaneceram isoladas dos eixos de circulação. As civilizações pré-colombianas dos altiplanos mexicanos e andinos são exemplos excepcionais de ocupação densa das altitudes elevadas. A valorização dos planaltos interiores só começou de fato na era industrial, com as ferrovias e as rodovias.
A conquista das terras interiores prossegue, mas a globalização ampliou o peso do comércio internacional, conferiu impulso à indústria do turismo e renovou a atração exercida pelas localizações litorâneas. A África, um continente de "países interiores", separados do mar pelas fronteiras políticas e pela carência de redes de transporte, está desconectada dos fluxos globais. Os Tigres Asiáticos, situados na orla asiática e no arco insular que separa o Índico do Pacífico, engataram-se nos intercâmbios mundializados.
Perto do mar, perto do mundo: eis o primeiro mandamento da geografia da globalização. No mundo inteiro, as cidades costeiras crescem mais que as aglomerações interiores. A estreita faixa de terras banhadas pelo mar é alvo de múltiplas demandas, que se conciliam no caldeirão anárquico da especulação imobiliária. As cidades, os núcleos portuários, as favelas, os povoados de pescadores e os paraísos turísticos devastados pelo maremoto serão reerguidos exatamente nos mesmos lugares. Afinal, essa é a natureza da economia.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
magnoli@ajato.com.br


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