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DEMÉTRIO MAGNOLI
Beira de mar, lugar comum
A "fúria da natureza" é, obviamente, uma expressão sem sentido. Terremotos e tsunamis são ocorrências normais do ponto de vista da
dinâmica da natureza. Esses eventos
são "desastres" apenas da perspectiva
da humanidade. Para nós, a magnitude desses "desastres naturais" mede-se pela quantidade de vítimas e pela
destruição de estruturas construídas.
O maremoto com epicentro no norte de Sumatra, que atingiu toda a bacia
do Índico, já ganhou um lugar na lista
dos piores "desastres naturais" registrados. Os seus efeitos trágicos não decorrem, no essencial, da energia liberada pelo abalo sísmico, mas da densidade das implantações humanas nas
planícies costeiras. As terras baixas, na
orla litorânea dos continentes e ilhas,
abrigam mais da metade da humanidade. Em contraste, nas terras altas,
em cotas superiores a mil metros, residem apenas cerca de 7% da população
mundial.
A apropriação desigual do relevo reflete, de modo peculiar, a história das
técnicas. Desde os primórdios, as enseadas abrigadas e a foz oceânica dos
rios serviram de sítios privilegiados
para as implantações humanas. As
principais cidades do Império Romano situavam-se na orla do Mediterrâneo, na Europa, na África e na Ásia
Menor, pois os custos de transporte
terrestre a longa distância eram proibitivos.
Os mares e rios formaram, durante
milênios, as "estradas líquidas" dos
intercâmbios humanos. As terras altas, encaixadas entre cordilheiras, permaneceram isoladas dos eixos de circulação. As civilizações pré-colombianas dos altiplanos mexicanos e andinos são exemplos excepcionais de
ocupação densa das altitudes elevadas. A valorização dos planaltos interiores só começou de fato na era industrial, com as ferrovias e as rodovias.
A conquista das terras interiores
prossegue, mas a globalização ampliou o peso do comércio internacional, conferiu impulso à indústria do
turismo e renovou a atração exercida
pelas localizações litorâneas. A África,
um continente de "países interiores",
separados do mar pelas fronteiras políticas e pela carência de redes de
transporte, está desconectada dos fluxos globais. Os Tigres Asiáticos, situados na orla asiática e no arco insular
que separa o Índico do Pacífico, engataram-se nos intercâmbios mundializados.
Perto do mar, perto do mundo: eis o
primeiro mandamento da geografia
da globalização. No mundo inteiro, as
cidades costeiras crescem mais que as
aglomerações interiores. A estreita faixa de terras banhadas pelo mar é alvo
de múltiplas demandas, que se conciliam no caldeirão anárquico da especulação imobiliária. As cidades, os núcleos portuários, as favelas, os povoados de pescadores e os paraísos turísticos devastados pelo maremoto serão
reerguidos exatamente nos mesmos
lugares. Afinal, essa é a natureza da
economia.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
magnoli@ajato.com.br
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