São Paulo, quinta-feira, 30 de dezembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Democracia, Pnud e questão social

FÁBIO WANDERLEY REIS


O decisivo problema envolvido na implantação da própria democracia "política" é, e foi sempre, a "questão social"
O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) divulgou há pouco o relatório de um projeto de pesquisa sobre a democracia na América Latina. Trata-se de iniciativa potencialmente de grande interesse. Não obstante a disposição algo desfrutável (e metodologicamente problemática) de inventar a roda e buscar uma teoria da democracia aplicável de modo especial ao âmbito latino-americano, o trabalho tem o mérito de retomar uma perspectiva sociológica e socialmente ambiciosa, em vez de certo "institucionalismo" estreito que se tem afirmado recentemente e no qual se destaca uma concepção minimalista e "formal" de democracia.
A ciência política há muito se interroga sobre as ligações entre a democracia e a "questão social". Em meados do século 20 se travou a discussão sobre "as condições sociais da democracia". Embora os aspectos "político" e "social" fossem aí à primeira vista apartados um do outro, não deixava de haver a suposição de que fosse possível agir politicamente para criar no plano social as condições propícias à democracia política como aspiração -o que redundava na indagação sobre as condições políticas da democracia, tanto política quanto social.
Por sua vez, o "minimalismo" recente se mostra inconsistente. Pretendendo ater-se, no limite, a uma concepção de democracia que salienta a garantia dos direitos civis ("O importante é que não nos matem", na síntese dramática de Adam Przeworski), ele não pode sustentar que tais garantias existam sem os direitos políticos de votar e ser votado (isto é, onde haja ditadura política), assim como não pode propor que os direitos políticos estejam assegurados igualitariamente em condições de grande desigualdade social.
Mas é imperioso avançar mais um passo: o decisivo problema envolvido na implantação da própria democracia "política" é, e foi sempre, a "questão social". Já com relação à pioneira democracia ateniense, estudos importantes permitem ver com clareza como os enfrentamentos acarretados pela questão social -a emergência do camponês como cidadão e a questão da legitimidade de que meros trabalhadores manuais participassem de decisões políticas e assumissem a condição de governantes- foram seu foco crucial e a raiz de suas dificuldades (em última análise, do seu fracasso). Quanto à época moderna, parte substancial da conquista da democracia não foi senão a acomodação das tensões sociais -e, ao cabo, da ameaça revolucionária- que brotam com a penetração do princípio do mercado e seus desdobramentos "liberais": a difusão do sufrágio não terminaria por levar à revolução pela via eleitoral e por liquidar o capitalismo, não seria o caso de recorrer ao autoritarismo conservador para garanti-lo? Naturalmente, tensões e temores análogos, e as custosas experiências correspondentes, marcaram o cenário latino-americano no último século.
Mas agora temos novas complicações, que dizem respeito a outra dimensão: a política econômica e seu papel no dilema das relações democracia política-democracia social. A acomodação efetiva das tensões sociais mencionadas se fez, na Europa, sobretudo por meio do equilíbrio obtido na social-democracia, em que se combinavam políticas econômicas keynesianas e orientadas para a demanda com as políticas sociais do Estado de bem-estar. Do ponto de vista prático, o projeto do Pnud não pode senão remeter à social-democracia, embora o empenho novidadeiro resulte na preferência por rótulos distintos. Contudo, apesar de referências à globalização e seu impacto, não há qualquer atenção para as dificuldades que cercam atualmente a social-democracia e suas políticas, em particular o keynesianismo, até nos países europeus. Que dizer dos países da América Latina, com seu legado social negativo e as precariedades resultantes quanto ao substrato político-eleitoral requerido pela experiência social-democrática efetiva?
A grande indagação é a de como fazer política social eficiente nas novas condições, em que a dinâmica econômico-tecnológica limita a capacidade de ação do Estado, impõe políticas econômicas amigáveis com respeito ao mercado e suas asperezas e tende a comprometer precisamente a dimensão social que a idéia de cidadania veio a adquirir no mundo da social-democracia. Por certo, uma visão míope da política econômico-social não tem como pretender superar a "corrida para o fundo" em que os ganhos econômicos surgem ligados com condições sociais precárias e baixos salários, nem como alcançar o que os economistas têm designado como "x-efficiency", ou seja, o equilíbrio superior em que a capacidade de ganho se liga a condições gerais favoráveis à produtividade (incluindo trabalhadores apropriadamente qualificados) que supõem justamente a política social já executada com êxito. Além disso, se as deficiências sociais, em nosso caso, dificilmente permitiriam abrir mão do paternalismo estatal no atendimento às carências e urgências da população e na capacitação mínima dos cidadãos, não se pode esperar que a incorporação social mais efetiva e consistente venha a fazer-se à margem da dinâmica econômica, ou prescindindo de políticas econômicas realistas e atentas às constrições do ambiente internacional em que se executam.
O exasperante emaranhado de dificuldades acaba redundando em impor o reconhecimento de que é preciso, simplesmente, fazer tudo: lubrificar e tornar seguros os mercados, reformar o Estado, atender às urgências, capacitar e qualificar a população -tudo isso num mundo inseguro e sobre a base negativa de nossa triste herança. Quem dera que as boas intenções do Pnud tivessem resultado em pelo menos começar a desatar o novelo.
Fábio Wanderley Reis, 67, cientista político, doutor pela Universidade Harvard (EUA), é professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

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