São Paulo, quinta-feira, 30 de dezembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A cloracne e o aspecto de Yushchenko

SEBASTIÃO A. P. SAMPAIO


O aspecto de Yushchenko, desfigurado pela cloracne, foi causado pela ingestão ou inalação de dioxina
As alterações cutâneas pela absorção da dioxina, ou outros agentes clorados, por contato, inalação ou ingestão são conhecidas como acne clórica ou cloracne. São encontradas ocasionalmente em trabalhadores de indústrias químicas de produtos clorados ou em agricultores que manipulam produtos clorados usados como defensivos em agricultura.
Em 1968 foi registrada uma epidemia em Yusho no Japão, causada pela ingestão de arroz contaminado com um defensivo, o clorobifenil. Outra epidemia foi verificada na Turquia, em 1974, pelo emprego de um pesticida que continha hexaclorobenzeno, calculando-se que tenha atingido cerca de 3.000 pessoas.
A maior e mais grave epidemia foi registrada em Seveso, Itália, em 1976, quando, por acidente técnico em uma indústria que produzia TCDD (tetraclorodibenzeno-dioxina), este espalhou-se pelo ar, em uma área de cerca de 81 hectares, com população rural, industrial e urbana. As lesões cutâneas imediatas ou tardias foram acompanhadas por um período de dez anos, possibilitando a descrição precisa do quadro agudo e crônico do envenenamento pela dioxina. Após o acidente, de um total de 1.600 pessoas expostas, 477 apresentaram eritema, edema e eventualmente vésico-bolhas ou nódulos que regrediram espontaneamente em alguns dias. Em 44 das pessoas expostas surgiram, em média após dois meses, cômedos e pápulo-pústulas nos casos leves e infiltração, nódulos, cistos, hiperpigmentação da face e pescoço, eventualmente em outras regiões, nos casos graves.
No decurso de um estudo por dez anos da população exposta, outros casos foram observados, atingindo o total de 193 casos de cloracne na epidemia de Seveso.
É interessante salientar que nenhum dos pacientes de cloracne teve lesões clínicas ou laboratoriais sugestivas de comprometimento sistêmico.
O aspecto de Yushchenko, desfigurado pela cloracne, foi causado pela ingestão ou inalação de dioxina, consoante comprovação laboratorial. Aparentemente ele não apresentou, ou passou despercebido, o quadro agudo do envenenamento pela dioxina, desenvolvendo as lesões tardias da cloracne, que causaram o aspecto desfigurado. Como ele teria recebido a dioxina, por inalação ou ingestão, é um fato a ser esclarecido e que deve ter ocorrido cerca de dois meses antes do aparecimento das primeiras lesões de cloracne.
É possível que outras pessoas de sua convivência tenham também recebido a dioxina e não tenham desenvolvido a cloracne. A explicação é que a ação da dioxina na pele é mediada por um receptor-AbR que pode estar ausente em muitas pessoas, não surgindo, dessa maneira, as lesões da acne clórica.
Teria Yushchenko lesões em outros órgãos? Na casuística de Seveso não foram detectadas lesões sistêmicas pela dioxina. Entretanto é possível que, conforme a quantidade de dioxina ingerida ou inalada, comprometimento de outros órgãos possa ocorrer.
A última questão sobre o tratamento: a ação tóxica acnegênica da dioxina tem duração de cerca de dois anos, com melhora pela evolução natural e eliminação da droga, ficando apenas as seqüelas, como depressões e cicatrizes. Entretanto, na ausência de comprometimento sistêmico, é possível o uso de medicamentos e procedimentos que possibilitariam uma regressão mais rápida da cloracne e a melhora do aspecto desfigurado de Yushchenko.
Sebastião A. Prado Sampaio, 85, médico, é professor emérito de Dermatologia da Faculdade de Medicina da USP.

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