|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCOS NOBRE
Medo de fantasmas
NO CONTO "Os mortos", de
James Joyce, Gabriel Con-
roy é o encarregado do discurso da festa na casa de suas tias,
que acontece todo ano na época do
Natal. Suas hesitações e contradições são as de uma pessoa viva.
Mas que pretende também representar uma nova geração, capaz de
lidar com sucesso com o passado,
com os mortos.
Diz ele no discurso: "Em encontros como este, sempre nos ocorrem tristes recordações: lembranças do passado, da juventude, de
mudanças, de rostos ausentes, cuja
falta sentimos. Nossa passagem pela vida é marcada por muitas dessas recordações e, se tivéssemos de
pensar nelas todo o tempo, não nos
sobrariam forças para desempenhar corajosamente nossas tarefas
entre os vivos".
2008 mostrou que não é nem um
pouco fácil viver entre os vivos.
Obama foi entendido como o Martin Luther King que sobreviveu e
venceu. A crise econômica de hoje
veio dizer que aprendeu a lição de
1929. Já a agitação de 1968 não teve
repetição. Cartola e a bossa nova
também não. São experiências que
ficaram no passado. Não foram
atualizadas como matéria viva do
presente.
Reverências e homenagens protocolares receberam Antonio Vieira, Machado de Assis e Guimarães
Rosa. E também a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a
Constituição de 1988. As comemorações da chegada da corte portuguesa, em 1808, ameaçaram fixar a
data como a verdadeira fundação
do Brasil. Uma vez mais, ficaram na
superfície folclórica.
Em 2008, o passado surgiu, no
geral, dessas maneiras assepticamente conservadoras: cuidadosamente progressista, saudosista, reverencial ou folclorizante. Um ano
de muito pouco barulho. Como que
para não perturbar o sono dos
mortos. Medo de fantasmas, com
certeza.
Um fantasma apareceu para Gabriel Conroy naquela noite. Sua
mulher ouviu uma canção que a
deixou triste e chorosa. Lembrou-a
de sua juventude e de um rapaz de
17 anos, Michael Furey, que tinha
se martirizado por amor a ela, no
duro frio irlandês.
Pela primeira vez ela contava essa história trágica a Gabriel. E, pela
primeira vez, ele penetrou no
mundo de fantasmas em que vivem
os vivos: "Sua alma acercava-se da
região habitada pela vasta legião
dos mortos. Pressentia, mas não
podia apreender suas existências
vacilantes e incertas. Ele próprio
dissolvia-se num mundo cinzento
e incorpóreo. O mundo real, sólido,
em que os mortos tinham vivido e
edificado, desagregava-se".
O passado e o presente estão repletos de Michael Fureys. Lembrar-se deles, deixá-los falar é a
mais corajosa promessa que se pode fazer para o ano novo.
nobre.a2@uol.com.br
MARCOS NOBRE escreve às terças-feiras nesta
coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Civilização em crise Próximo Texto: Frases
Índice
|