São Paulo, quarta, 30 de dezembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Incerteza amarga

ANTONIO DELFIM NETTO

Nada perturba mais profundamente a biografia do ilustre presidente da República do que assistir a o extraordinário sucesso do seu programa de estabilização terminar no pronto-socorro do FMI. Ele deve agradecer a oportunidade que lhe foi oferecida pelo Congresso Nacional de poder corrigir esse desastre com uma vigorosa mudança das políticas fiscal, monetária e cambial. Ele tem a chance de recolocar o país no caminho do equilíbrio interno e externo e conservar a estabilidade tão brilhantemente conseguida. Esse será, certamente, o objetivo do segundo mandato.
A diferença de sentimento entre o início do primeiro e o do segundo mandato é enorme. Em janeiro de 1995 tudo era certeza e esperança. O governo, com uma retórica eficiente e certeira, tinha nos convencido de que sabia o que queria e conhecia o caminho. A inflação declinando, a enorme expansão do nível de atividade, a redução do nível de desemprego, tudo indicava um futuro brilhante. A eleição no primeiro turno dava ao presidente ainda maior credibilidade e autoridade para proceder às reformas radicais necessárias para sustentar a arriscada aposta na sobrevalorização cambial, que àquela altura já devastara o setor agrícola e prenunciava um desastre futuro.
Não havia oposição. O sucesso do Real fora tão acachapante que o debate foi interditado pelo florescimento de um pensamento único, ideologicamente sustentado por uma proposição que raiava ao absurdo: o governo sabe tudo. Ele conhece o caminho. É a luz e inspiração para o desenvolvimento. O seu corolário era que o setor produtivo privado nacional sempre vivera de suas benesses. Era hora de submetê-lo a um regime de emagrecimento: ele só pensa no curto prazo e é terrivelmente guloso. O governo e o capital estrangeiro vindo com a abertura vão, afinal, educá-lo convenientemente. Esse era o papel do câmbio valorizado. A ideologia pervertida (não a teoria econômica) garantia que a "désinflation compétitive" iria reeducar os empresários a se conformar com menores margens de lucro, buscar o aumento da produtividade ou vender-se aos estrangeiros. E, melhor ainda, iria, pelo desemprego, reeducar os brasileiros a trabalhar mais e se conformar com salários menores. O Banco Central, com sua política de câmbio sustentada pela maior taxa de juros real do mundo, iria criar o "brasileiro novo", feito à imagem dos seus gênios construtores...
Aos que faziam a menor observação sobre o desastre cada vez mais visível, desqualificava-se como "ogros", "fracassomaníacos", "zelotipistas", "amigos da inflação" etc., com o maior suporte de certa mídia "chapa branca", que comprara a deformação ideológica como boa ciência econômica.
Por conta de tudo isso, o início do segundo mandato é mais triste: tudo é incerteza. Ele começa com uma trágica disputa entre alguns analistas para saber qual vai ser a queda do PIB em 1999! Todos nós sabemos que essas "previsões" não podem ser levadas a sério, porque as séries econômicas não têm uma estrutura interna bem definida. O grave mesmo é o sinal da mudança. Todos aceitam que o PIB vai cair no primeiro ano do segundo mandato, o que pode acontecer ou não, mas cria uma amarga expectativa.


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.