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A criança e o velho
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Outro dia, vendo a
reprise de um programa que gravei
com o Roberto D'Ávila em Paris, me
surpreendi citando aquele conto de
Scott Fitzgerald: o homem que nasceu
velho e foi rejuvenescendo até morrer
com meses de idade.
Está no livro "Seis Contos da Era do
Jazz". É um roteiro extravagante para
a condição humana, bem menos doloroso do que o processo ortodoxo que
nos faz nascer crianças e morrer velhos.
Nada mais ridículo do que sabedoria dos velhos, dos que acumularam
experiência e serenidade para julgar
os outros e julgar-se a si próprios. Tomemos como base aquele outro conto,
impropriamente rotulado de infantil:
o do rei nu.
Um velho que constate a nudez do
rei é um idiota. Ele vê a realidade e a
aceita naturalmente, o rei está nu porque é um direito do rei ficar nu. De
maneira que um velho, quanto mais
sábio for, menos se espantará com a
nudez do rei.
Já a criança apontará a nudez do rei
como um fato transcendental, uma
metáfora do poder. Seu grito no colo
da mãe ("O rei está nu!") tem a força
e a luminosidade do grito de Arquimedes, também nu, dizendo "Eureca!".
Daí que os velhos evitam dizer que o
rei está nu. Eles também devem estar
nus, tá todo mundo nu, nada os espanta. Já as crianças têm o direito de
investigar o mundo e os homens que
formam o mundo. Lembro que, em
criança, tinha um vizinho que trabalhava numa loja na rua dos Andradas
e a quem meu pai chamava de "boa
alma".
Eu dava de barato que ele tivesse
boa alma ou nem tivesse alma alguma. O que me espantava nele era que
se chamava Almeida. Não conhecera,
até então, nenhum Almeida. Admirava-me também de que ninguém estranhasse que o citado Almeida tivesse
esse assombroso nome.
Quando percebi que ninguém me
acompanhava nesse estupor, tentei me
habituar ao fato de que o Almeida fosse Almeida mesmo. Fiquei velho, como
todo mundo. Mas acho que a criança
que eu fora sabia melhor das coisas.
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