São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 1999

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A criança e o velho

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Outro dia, vendo a reprise de um programa que gravei com o Roberto D'Ávila em Paris, me surpreendi citando aquele conto de Scott Fitzgerald: o homem que nasceu velho e foi rejuvenescendo até morrer com meses de idade.
Está no livro "Seis Contos da Era do Jazz". É um roteiro extravagante para a condição humana, bem menos doloroso do que o processo ortodoxo que nos faz nascer crianças e morrer velhos.
Nada mais ridículo do que sabedoria dos velhos, dos que acumularam experiência e serenidade para julgar os outros e julgar-se a si próprios. Tomemos como base aquele outro conto, impropriamente rotulado de infantil: o do rei nu.
Um velho que constate a nudez do rei é um idiota. Ele vê a realidade e a aceita naturalmente, o rei está nu porque é um direito do rei ficar nu. De maneira que um velho, quanto mais sábio for, menos se espantará com a nudez do rei.
Já a criança apontará a nudez do rei como um fato transcendental, uma metáfora do poder. Seu grito no colo da mãe ("O rei está nu!") tem a força e a luminosidade do grito de Arquimedes, também nu, dizendo "Eureca!".
Daí que os velhos evitam dizer que o rei está nu. Eles também devem estar nus, tá todo mundo nu, nada os espanta. Já as crianças têm o direito de investigar o mundo e os homens que formam o mundo. Lembro que, em criança, tinha um vizinho que trabalhava numa loja na rua dos Andradas e a quem meu pai chamava de "boa alma".
Eu dava de barato que ele tivesse boa alma ou nem tivesse alma alguma. O que me espantava nele era que se chamava Almeida. Não conhecera, até então, nenhum Almeida. Admirava-me também de que ninguém estranhasse que o citado Almeida tivesse esse assombroso nome.
Quando percebi que ninguém me acompanhava nesse estupor, tentei me habituar ao fato de que o Almeida fosse Almeida mesmo. Fiquei velho, como todo mundo. Mas acho que a criança que eu fora sabia melhor das coisas.



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