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São Paulo, segunda-feira, 31 de março de 2003

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BORIS FAUSTO

As ilusões americanas

A guerra do Iraque põe em gritante relevo algumas ilusões americanas. Uma das mais importantes é a convicção majoritária de que os Estados Unidos são portadores de ideais universais de justiça e de liberdade, a que os diferentes povos do mundo aspiram em quaisquer circunstâncias.
Poucas coisas, nesse plano, me parecem mais didáticas do que a fala do presidente George W. Bush perante seu comando de guerra na Flórida, transmitida para todo o mundo. Diante de uma platéia encantada, Bush martelou a tese de que a invasão do Iraque é uma guerra de libertação, promovida por um governo e por um povo que sempre cumpriram historicamente esse papel.
É claro que, se a platéia pode se permitir ficar na ideologia, o presidente tem de levar em conta fatores de ordem estratégica e de poder, determinantes em última instância da guerra.
Mas a ideologia não é só fumaça. Pelo contrário, tem profundas raízes culturais, como o próprio desenvolvimento do conflito está revelando. Até aqui, um pressuposto da ação militar -cada vez mais contraditado pelos fatos- é o de que o povo iraquiano, tiranizado por Saddam Hussein, iria se levantar contra o ditador. Por sua vez, o Exército, excetuadas algumas unidades fiéis da Guarda Republicana, abandonaria a luta, tudo permitindo que a guerra fosse uma cirurgia de curta duração.
Nada disso vem acontecendo. As forças militares iraquianas, de qualquer natureza, vêm opondo forte resistência ao avanço da chamada coalizão e não há indícios de apoio significativo da população aos invasores. Para entender essa circunstância, que não tem nada de surpreendente, é necessário perceber, mesmo fragmentariamente, a "visão do outro" - um esforço ao qual o governante americano e seus assessores não se dispõem.
Saddam Hussein -seria preciso dizer?- é um ditador brutal que massacrou os curdos, torturou e assassinou não só opositores, como simples divergentes, e submeteu seu país a uma lavagem cerebral, em que o culto da personalidade chegou a níveis extremos.
Se tudo isso é verdade, é certo também que o Iraque é um país recente, sem tradição democrática, joguete dos interesses das grandes potências. A ferro e fogo, Saddam unificou o país, deu-lhe uma identidade -ainda que por caminhos perversos - e associou sua imagem à melhora das condições de vida do povo. Em um quadro dessa natureza, as forças da coalizão são vistas pelo que são, ou seja, como forças invasoras, e o sentimento de defesa nacional tende a crescer diante do inimigo externo.
A não-percepção do outro, a tentativa de inculcar valores que são altamente positivos, mas pela força das armas, estão custando ao governo Bush a penosa constatação de que as forças da coalizão são indesejáveis, com poucas exceções. Problema sério para o desenvolvimento da campanha militar e ainda maior para o Iraque pós-Saddam.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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