|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BORIS FAUSTO
As ilusões americanas
A guerra do Iraque põe em gritante relevo algumas ilusões americanas. Uma das mais importantes é a
convicção majoritária de que os Estados Unidos são portadores de ideais
universais de justiça e de liberdade, a
que os diferentes povos do mundo aspiram em quaisquer circunstâncias.
Poucas coisas, nesse plano, me parecem mais didáticas do que a fala do
presidente George W. Bush perante
seu comando de guerra na Flórida,
transmitida para todo o mundo.
Diante de uma platéia encantada,
Bush martelou a tese de que a invasão
do Iraque é uma guerra de libertação,
promovida por um governo e por um
povo que sempre cumpriram historicamente esse papel.
É claro que, se a platéia pode se permitir ficar na ideologia, o presidente
tem de levar em conta fatores de ordem estratégica e de poder, determinantes em última instância da guerra.
Mas a ideologia não é só fumaça. Pelo contrário, tem profundas raízes culturais, como o próprio desenvolvimento do conflito está revelando. Até
aqui, um pressuposto da ação militar
-cada vez mais contraditado pelos
fatos- é o de que o povo iraquiano,
tiranizado por Saddam Hussein, iria
se levantar contra o ditador. Por sua
vez, o Exército, excetuadas algumas
unidades fiéis da Guarda Republicana, abandonaria a luta, tudo permitindo que a guerra fosse uma cirurgia de
curta duração.
Nada disso vem acontecendo. As
forças militares iraquianas, de qualquer natureza, vêm opondo forte resistência ao avanço da chamada coalizão e não há indícios de apoio significativo da população aos invasores. Para entender essa circunstância, que
não tem nada de surpreendente, é necessário perceber, mesmo fragmentariamente, a "visão do outro" - um
esforço ao qual o governante americano e seus assessores não se dispõem.
Saddam Hussein -seria preciso dizer?- é um ditador brutal que massacrou os curdos, torturou e assassinou
não só opositores, como simples divergentes, e submeteu seu país a uma
lavagem cerebral, em que o culto da
personalidade chegou a níveis extremos.
Se tudo isso é verdade, é certo também que o Iraque é um país recente,
sem tradição democrática, joguete dos
interesses das grandes potências. A
ferro e fogo, Saddam unificou o país,
deu-lhe uma identidade -ainda que
por caminhos perversos - e associou
sua imagem à melhora das condições
de vida do povo. Em um quadro dessa
natureza, as forças da coalizão são vistas pelo que são, ou seja, como forças
invasoras, e o sentimento de defesa
nacional tende a crescer diante do inimigo externo.
A não-percepção do outro, a tentativa de inculcar valores que são altamente positivos, mas pela força das
armas, estão custando ao governo
Bush a penosa constatação de que as
forças da coalizão são indesejáveis,
com poucas exceções. Problema sério
para o desenvolvimento da campanha
militar e ainda maior para o Iraque
pós-Saddam.
Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta
coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Grandes momentos Próximo Texto: Frases
Índice
|