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São Paulo, segunda-feira, 31 de março de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Grandes momentos

RIO DE JANEIRO - Morava na Tijuca, numa casa que tinha em frente uma mercearia chamada "Ao Belo Danúbio". A dona era uma austríaca, que trouxera para o Brasil algumas receitas de bolos e tortas de Viena. Vendia também artigos importados, molhos complicados, páprica e salsichas, que, depois das tortas, eram o carro-chefe da casa. Ficavam penduradas em fieiras pelo teto, como bandeirinhas de arraial caipira em festa junina.
No dia em que Hitler invadiu a Polônia, em 1939, houve manifestações pró e contra os alemães. E a dona da mercearia, embora fosse austríaca, para todos os efeitos era considerada alemã.
Eu estava na janela e acompanhei com interesse o que se passou. Aquilo que os franceses chamam de "canalha", aos gritos, depredou o "Ao Belo Danúbio". Vi passar pela rua um garotinho, que eu conhecia de vista porque, nas horas vagas, vendia amendoim torradinho e, nas horas não-vagas, entregava marmitas pelo bairro. Ele arrastava uma comprida fieira de salsichas vienenses.
Para ele, a guerra era longe, nem sabia onde era a Polônia, a Alemanha, nem sabia por que havia guerra. Na confusão, ele aproveitara o quebra-quebra que tinha alguma coisa de cívico, de opção pelo bem contra o mal. Só que naquele tempo não se dizia "quebra-quebra", mas "tasca". Foi um tasca geral, politicamente correto
Lembro sempre essa cena quando vejo confusões generalizadas, como a de agora. Associo-a àquela confusão que Shakespeare descreveu quando Marco Aurélio terminou seu discurso no funeral de César. A "canalha" da vez não tinha salsichas nem o "Ao Belo Danúbio" para exprimir a sua cólera. Pegaram um poeta menor, Cinna, que foi confundido com um homônimo que conspirara com Brutus, que, como os demais assassinos de César, era um homem honrado.
Na hora do aperto, ele gritava, sou Cinna, o poeta! sou Cinna, o poeta! Mas não adiantou. Mataram-no porque fazia maus versos.


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