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São Paulo, segunda-feira, 31 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

As facetas do MST

DENIS LERRER ROSENFIELD

Talvez estejamos navegando no equívoco. Por longos anos, acostumamo-nos a considerar o MST como um movimento voltado para o atendimento dos problemas do homem do campo. Suas ações eram objeto de simpatia por serem identificadas à luta contra o "latifúndio", contra a "propriedade improdutiva", como se de suas ações fosse resultar um mundo melhor. Mesmo os excessos do movimento eram desculpados em nome da "boa" causa. A simpatia pelo MST era principalmente o produto de uma espécie de má consciência de setores da classe média, que se penitenciavam de sua inação.
A tradução política desse processo foi, primeiro, o fortalecimento do MST como força política e, segundo, a simbiose entre o próprio movimento, o PT e setores da igreja, representados pela Pastoral da Terra. Diante dessa conjunção, o governo FHC não soube discernir o aspecto social/agrário do político.
No aspecto social, o governo anterior operou a maior redistribuição de terras e de recursos ocorrida em nosso país. Sob essa ótica, pode-se também dizer que ele incorreu num equívoco econômico, pois não se perguntou se esse modo de distribuição, baseado em assentamentos, era compatível com o desenvolvimento econômico do campo, baseado na exploração produtiva, capitalista, da grande propriedade. O desempenho do agronegócio brasileiro, com seu vigor exportador, é um exemplo eloquente dessa outra via.
No aspecto político, essa política de atendimento das reivindicações do MST terminou por fortalecê-lo, tornando-o um interlocutor privilegiado. Infrações à lei foram tratadas com condescendência. Invasões de propriedade, produtivas ou não, ocupações e depredações de prédios públicos eram tratadas como se a lei não fosse objeto de respeito. O resultado foi a impunidade que ora se prolonga. Financeiramente, o governo FHC sustentou o movimento, fazendo vista grossa ao pagamento do dízimo, obrigatório para os assentados.
O PT, por sua vez, identificou a sua luta com a do MST, tendo na Pastoral da Terra a sua justificação religiosa. O político, o social e o religioso misturaram-se de tal maneira que a justiça da reivindicação social veio a significar o apoio a toda e qualquer política, inclusive a revolucionária. Não faltaram tampouco escolas de formação de quadros nem uma pedagogia "revolucionária", voltadas para a formação de consciências. Nesta perspectiva, a violência das invasões nada mais seria do que o prenúncio da justificação de todo e qualquer tipo de violência. É significativo que a área de atuação governamental encarregada da questão agrária seja aquela controlada pelo próprio movimento e pelos setores à esquerda do partido.


A posição do governo Lula em relação à MP que criminaliza as invasões de terra será uma linha divisória


Produziu-se, então, um descolamento em relação ao social, na medida em que terras eram distribuídas, com o consequente fortalecimento da faceta política do MST. Operando-se esse descolamento, a natureza mesma da demanda foi alterada. A insatisfação com quaisquer atendimentos tornou-se a regra, precisamente por se tratar de tudo pôr em movimento, inclusive nossas instituições democráticas.
As demandas tornaram-se mutantes, sempre aparecendo sob novas faces, que imediatamente desapareciam em proveito de outras e assim sucessivamente. E mesmo a palavra demanda começou a perder sentido, pois o alvo do movimento veio a ser a imposição de suas próprias condições e critérios.
Ora tratava-se de ocupar o latifúndio improdutivo, ora o produtivo, ora de determinar o tamanho da propriedade que deveria ser objeto de desapropriação, ora de desafiar a Justiça, ora de menosprezar o Poder Executivo, ora de assumir a política de Arafat, ora de ditar a política relativa aos transgênicos, ora de defender a política agrícola francesa na figura de José Bové, ora de lutar contra a Alca e o "imperialismo". E tudo isso tendo como pano de fundo a "transformação", a "mudança radical" da sociedade brasileira.
Demandas que aparecem sob facetas sempre distintas, imposições inexequíveis e exigências que expressam um movimento incessante, fazendo saltar quaisquer pontos de referência, são expressões de uma concepção do político que apontam para o rompimento da ordem política, e não para o atendimento de reivindicações sociais. Essas tornam-se coadjuvantes de uma encenação, que encontra nelas um meio de justificação.
Nesse sentido, a posição do governo Lula em relação à MP que criminaliza as invasões de terra será uma linha divisória: ou o MST é tratado como um movimento social que deve obedecer às regras democráticas, ou abre-se um amplo caminho para que sua faceta político-revolucionária se imponha sobre as instituições republicanas.


Denis Lerrer Rosenfield, 52, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e editor da revista "Filosofia Política".

E-mail denisrosenfield@terra.com.br



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