São Paulo, sexta-feira, 31 de março de 2006

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JOSÉ SARNEY

O Nordeste e o inferno de Dante

Toda campanha eleitoral começa com comer uma buchada nordestina, usar um chapéu de couro e montar num jumento velho. É a fórmula clássica dos marqueteiros. Nordeste é isso.
Meu amigo Abreu Sodré, uma das melhores criaturas que eu conheci na vida, gozador emérito quando queria nos provocar, naquela sua maneira de catar carinho, gostava de dizer: "Sarney, vocês nordestinos não podem se queixar de São Paulo. Aqui é a cidade em que mais se gosta de nordestino, que existe para todo lado. Gente boa, trabalhadora. Mas olhe bem: para lavador de carro, empregada doméstica e construção civil. Para presidente, nem sonhar. Acostume-se com as tacas". Era uma brincadeira que a velha amizade nos permitia. Eu retrucava: "Sodré, a gente de que você falou é povo, e você só conheceu povo quando eu lhe recebi no Maranhão com aquela festança de bumba-meu-boi".
E, por falar em povo -história puxa história-, quando o Jânio Quadros voltou depois da renúncia, fomos uns poucos gatos-pingados recebê-lo em Santos. Entre esses, estávamos eu, Quintanilha, Aparecido, Pedroso Horta e outros. Quando Pedroso Horta foi subindo a escada do navio, uns trabalhadores que estavam embaixo o olharam, bateram algumas palmas e disseram: "Salve, doutor Pedroso". Quando chegamos em cima, ele, com aquele inesquecível cigarro delicadamente apertado entre os dedos longos, o indicador e o médio, voz pausada, nos disse: "Eu não conhecia o povo. É até simpático!". Era o seu jeito irônico.
Lembro essas histórias quando vejo as fotos do simpático governador de São Paulo, o candidato Geraldo Alckmin, uma figura doce e bem composta, que, quando chega ao Rio, cai no conto velho dos marqueteiros. Tocaram chapéu de couro na cabeça dele, tendo ao lado o Agamenon, presidente do Centro de Tradições Nordestinas, também enfeitado com um chapéu de cangaceiro com pedaços de espelhos na aba levantada. Cumpriam um script dos analistas do eleitorado. Como os nordestinos não estão muito PSDB, chapéu de couro neles!
Por causa dessa visão sobre o Nordeste, quase matam o Fernando Henrique na eleição de 1998, com uma buchada de carneiro, sacudida com um trote de jumento nas ruas de Alagoas. Lula também não fugiu da jogada do marketing e, na mesma semana, cascaram-lhe um cocar de uma cauda dupla caindo sobre os ombros que mais parecia enfeite dos índios apaches americanos desfilando para turistas.
Ninguém pensa que para falar sobre o Nordeste e o Norte é preciso considerá-los como sério problema nacional, encontrar uma solução para os desafios que não se resolvem com chapéu de couro. Os desníveis regionais continuam aumentando e, quando extinguiram a Sudene e a Sudam -velha aspiração de uma parte retrógrada do empresariado do centro-sul-, tiraram da pauta nacional o drama dessas regiões do Brasil.
Mas, na linha de sofrimento, não esqueçamos o muito injustiçado ex-ministro Palocci, uma das maiores revelações políticas do país, tendo que descer, como ele disse, ao círculo segundo ou terceiro do inferno de Dante.
Acho que foi ao segundo. Não pelo tema que trata, mas pelo último verso do canto 5º, que trata do segundo estágio: "E caí como corpo morto cai" (lamentavelmente, acrescento).
Pior estou eu, contemplando o 9º círculo de Dante, o dos traidores. Olho a última volta, dos que atraiçoaram os amigos, onde Lúcifer eternamente mói Judas, Brutus e Cássio.
Melhor do que nós, só dona Ângela dançando o seu xaxado num outro inferno.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
@ - jose-sarney@uol.com.br


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