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JOSÉ SARNEY
O Nordeste e o inferno de Dante
Toda campanha eleitoral começa com comer uma buchada nordestina, usar um chapéu de couro e
montar num jumento velho. É a fórmula clássica dos marqueteiros. Nordeste é isso.
Meu amigo Abreu Sodré, uma das
melhores criaturas que eu conheci na
vida, gozador emérito quando queria
nos provocar, naquela sua maneira de
catar carinho, gostava de dizer: "Sarney, vocês nordestinos não podem se
queixar de São Paulo. Aqui é a cidade
em que mais se gosta de nordestino,
que existe para todo lado. Gente boa,
trabalhadora. Mas olhe bem: para lavador de carro, empregada doméstica
e construção civil. Para presidente,
nem sonhar. Acostume-se com as tacas". Era uma brincadeira que a velha
amizade nos permitia. Eu retrucava:
"Sodré, a gente de que você falou é povo, e você só conheceu povo quando
eu lhe recebi no Maranhão com aquela festança de bumba-meu-boi".
E, por falar em povo -história puxa
história-, quando o Jânio Quadros
voltou depois da renúncia, fomos uns
poucos gatos-pingados recebê-lo em
Santos. Entre esses, estávamos eu,
Quintanilha, Aparecido, Pedroso
Horta e outros. Quando Pedroso Horta foi subindo a escada do navio, uns
trabalhadores que estavam embaixo o
olharam, bateram algumas palmas e
disseram: "Salve, doutor Pedroso".
Quando chegamos em cima, ele, com
aquele inesquecível cigarro delicadamente apertado entre os dedos longos, o indicador e o médio, voz pausada, nos disse: "Eu não conhecia o povo. É até simpático!". Era o seu jeito
irônico.
Lembro essas histórias quando vejo
as fotos do simpático governador de
São Paulo, o candidato Geraldo Alckmin, uma figura doce e bem composta, que, quando chega ao Rio, cai no
conto velho dos marqueteiros. Tocaram chapéu de couro na cabeça dele,
tendo ao lado o Agamenon, presidente do Centro de Tradições Nordestinas, também enfeitado com um chapéu de cangaceiro com pedaços de espelhos na aba levantada. Cumpriam
um script dos analistas do eleitorado.
Como os nordestinos não estão muito
PSDB, chapéu de couro neles!
Por causa dessa visão sobre o Nordeste, quase matam o Fernando Henrique na eleição de 1998, com uma buchada de carneiro, sacudida com um
trote de jumento nas ruas de Alagoas.
Lula também não fugiu da jogada do
marketing e, na mesma semana, cascaram-lhe um cocar de uma cauda
dupla caindo sobre os ombros que
mais parecia enfeite dos índios apaches americanos desfilando para turistas.
Ninguém pensa que para falar sobre
o Nordeste e o Norte é preciso considerá-los como sério problema nacional, encontrar uma solução para os
desafios que não se resolvem com
chapéu de couro. Os desníveis regionais continuam aumentando e, quando extinguiram a Sudene e a Sudam
-velha aspiração de uma parte retrógrada do empresariado do centro-sul-, tiraram da pauta nacional o
drama dessas regiões do Brasil.
Mas, na linha de sofrimento, não esqueçamos o muito injustiçado ex-ministro Palocci, uma das maiores revelações políticas do país, tendo que descer, como ele disse, ao círculo segundo
ou terceiro do inferno de Dante.
Acho que foi ao segundo. Não pelo
tema que trata, mas pelo último verso
do canto 5º, que trata do segundo estágio: "E caí como corpo morto cai" (lamentavelmente, acrescento).
Pior estou eu, contemplando o 9º
círculo de Dante, o dos traidores. Olho
a última volta, dos que atraiçoaram os
amigos, onde Lúcifer eternamente
mói Judas, Brutus e Cássio.
Melhor do que nós, só dona Ângela
dançando o seu xaxado num outro inferno.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
@ - jose-sarney@uol.com.br
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