São Paulo, sábado, 31 de março de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

É positiva a decisão do TSE que estabelece ser do partido o mandato de deputado?

NÃO

A reforma judicial da política

RICARDO PENTEADO

HÁ MAIS de 20 anos, o STF reconheceu que o mandato eletivo pertence ao candidato eleito, a quem a soberania do voto outorgou a representação popular.
Desde então, é pacífico que o estabelecimento da fidelidade partidária pela transferência da titularidade do mandato do parlamentar eleito para o partido dependeria de reforma constitucional, até porque não se pode cogitar de perda de mandato sem expressa e objetiva tipificação legal.
Ao que parece, contudo, a maioria dos ministros do TSE, agastada com a fisiológica dança das cadeiras do início das legislaturas, atalhou a reforma política que caminhava a passos de cágado no Legislativo e fez o que o próprio STF proclamara como impossível de ser feito: declarou que os mandatos não pertencem (mais) aos eleitos, mas sim aos partidos que abrigaram os candidatos.
De supetão, após mais de 20 anos de infidelidade consentida pela legislação, o TSE fez o que a opinião pública parece festejar hoje como o "pontapé inicial" da reforma política.
A aflição pelo aperfeiçoamento do sistema eleitoral está nos levando, entretanto, à subversão dos papéis das nossas instituições e poderá resultar em um grave retrocesso no desenvolvimento de nossa democracia juvenil.
A subversão advém do fato de que não cabe ao Judiciário promover reforma política. A fidelidade partidária não é uma idéia que deve ser adotada por um decreto isolado, como se fosse uma finalidade em si mesma, e sua instituição depende de um sistema legal complexo e coerente, baseado na valorização do sistema partidário nacional, instituído num contexto de reformas que vai muito mais longe.
O retrocesso poderá advir de uma indesejada queda-de-braço entre os Poderes em conflito e resultar em uma reação legislativa simetricamente oposta, cuja preocupação será só preservar a competência que foi antes usurpada -o que pode parecer mais urgente do que a reforma política propriamente dita. Não custa recordar, foi assim com a "verticalização".
O estabelecimento da "fidelidade partidária" por regra não escrita, produto de uma dedução nunca antes reconhecida, não só cria a equivocada impressão de que a solução dos males políticos é judicial como implica a paradoxal sensação de que o STF, a mais alta corte do país, não sabe o que diz.
Não cabia ao TSE responder a uma consulta a respeito de matéria que jamais será objeto de sua jurisdição nos casos concretos, pois, no que concerne aos mandatos eletivos e sua eventual perda decretada pela mesa da Casa legislativa, só a Justiça comum ou o próprio STF têm competência para decidir o conflito respectivo.
É um equívoco, ademais, justificar a decisão do TSE sob a alegação de que o eleitor dá seu voto aos partidos políticos, e não aos candidatos. Hábeis operações aritméticas vêm sendo feitas para tentar demonstrar que apenas algumas dezenas, entre as centenas de parlamentares, teriam atingido pessoalmente o coeficiente eleitoral, provando-se, assim, que a grossa maioria dos deputados teria galgado o poder pela votação partidária, e não pela votação nominal.
Isso não é verdade. A maioria dos eleitos foi levada ao Congresso pelo excedente da votação nominal obtida pelos grandes "puxadores de votos", e não pelos votos ideológicos atribuídos às legendas. Quem se lembra da fenomenal votação obtida pelo deputado Enéas bem sabe que os milhões de eleitores que elegeram outros deputados obscuros não foram atraídos pela ideologia do PRONA, mas pelo excêntrico carisma do líder da chapa.
A verdade é que, para o bem ou para o mal, o eleitor nada quer com os partidos políticos, e sua identificação tem sido travada com o candidato, por meio do voto nominal. Convém recordar, aliás, que a própria Justiça Eleitoral costuma sugerir, na sua propaganda institucional, que o eleitor deve conhecer melhor o candidato, jamais fazendo referência aos partidos como objeto de análise crítica.
Defender a fidelidade partidária é tarefa tão fácil quanto a de defender a água encanada ou a luz elétrica. Difícil mesmo é vê-la legitimada e delimitada por uma lei aprovada pelo Congresso Nacional, a única instituição autorizada a legislar a esse respeito.


RICARDO PENTEADO, 45, advogado especialista em direito eleitoral, é presidente do IDPE (Instituto de Direito Político e Eleitoral), membro da Comissão de Direito Eleitoral do Iasp e autor do livro "Manual das Eleições".

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