São Paulo, terça, 31 de março de 1998

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Uma noite na ópera

ROBERTO MANGABEIRA UNGER

"O Brasil é isso. Aqui as coisas funcionam assim", explicou-me, pacientemente, uma supervisora do pessoal do teatro São Pedro. Eu havia ido, na noite da quarta-feira passada, ao teatro recém-inaugurado para ouvir "La Cenerentola" de Rossini. Sem haver descoberto como obter ingressos, compareci, para comprar bilhete na hora.
Os ingressos, porém, haviam sido reservados, segundo informou a supervisora, "aos amigos do governador e do secretário de Cultura". E por que não?, argumentou ela, enquanto os funcionários do teatro distribuíam gratuitamente libreto luxuoso, presenteado pelo povo de São Paulo, aos beneficiários do favor público. O governador havia gasto muito dinheiro com a restauração do teatro, continuou ela. Nada mais natural do que fechar o teatro e celebrar a restauração com os seus.
Ao meu lado, minha mulher persistia: "Mas o Brasil tem de mudar". "Ah, mas vai demorar", continuou a funcionária, já irritada com nossa incompreensão das regras do jogo no país.
Foi então que ponderei à minha tutora que a situação que ela descrevia parecia configurar o crime de que trata o inciso 3º do artigo 10 da Lei de Improbidade Administrativa. Essa observação inesperada acabou a conversa. Não havendo encontrado maneira de vender-nos as entradas, chamaram-nos, furtivamente, para sentar em assentos de trás. Não consegui, porém, prestar atenção ao espetáculo, porque vi à minha frente uma imagem da arte crucificada, como sempre está, na cruz da realidade social e do Brasil afundado, como sempre esteve, em humilhações de que não sabe como escapar.
É espinhosa a questão do subsídio à arte em país pobre e desigual, onde não se assegurou o atendimento das necessidades mais básicas. Fortalece-se a justificativa do subsídio quando se evitam os privilégios e se respeita a vocação transformadora da arte. A burguesia paulistana não precisa de tanto dinheiro público para vivenciar tão fraco desafio estético e moral.
Recomendo, em vez de "La Cenerentola", que está a meio caminho da música de elevador e das novelas da Globo, "Moisés e Aron" de Schoenberg. Nada seria tão útil aqui quanto a história, em música intransigente, do profeta tartamudo e de seu ajudante esperto e eloquente, lutando contra um povo vidrado no visível e carente de fé.
Pensando nessa história, saí cedo do teatro. Fui parando as pessoas que passavam por ali para contar o que havia acontecido e sentir a reação. Um punhado de gente curiosa e indignada cercou-me.
A reivindicação do direito impessoal contra o regime do favor e do privilégio não é desvio moralizante; representa condição para consertar o Brasil. Sem Estado desprivatizado e confiável, não resolveremos nossos problemas econômicos e sociais. Ao contrário dos nossos juízes, comumente passivos diante dos desmandos do poder, todo mundo na rua o compreendia. Foi essa preocupação o fator mais importante que levou à desastrada eleição de Collor. Continua a ser o ponto mais explosivo da discussão nacional.
Enquanto dentro do teatro São Pedro o drama infantil da gata borralheira caminhava para o seu fim previsível, diante da platéia refestelada e sonolenta, lá fora, nas sombras da Barra Funda, o surpreendente acontecia: um pedacinho do país se levantava. "Mande brasa!", começaram a gritar. Vendo os semblantes espantados e esperançosos à minha volta, tive momento de felicidade. A energia anárquica da noite prenunciava a libertação do Brasil.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
E-mail: unger@law.harvard.edu



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