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Uma noite na ópera
ROBERTO MANGABEIRA UNGER
"O Brasil é isso. Aqui as coisas funcionam assim", explicou-me, pacientemente, uma supervisora do pessoal
do teatro São Pedro. Eu havia ido, na
noite da quarta-feira passada, ao teatro recém-inaugurado para ouvir "La
Cenerentola" de Rossini. Sem haver
descoberto como obter ingressos,
compareci, para comprar bilhete na
hora.
Os ingressos, porém, haviam sido
reservados, segundo informou a supervisora, "aos amigos do governador
e do secretário de Cultura". E por que
não?, argumentou ela, enquanto os
funcionários do teatro distribuíam
gratuitamente libreto luxuoso, presenteado pelo povo de São Paulo, aos
beneficiários do favor público. O governador havia gasto muito dinheiro
com a restauração do teatro, continuou ela. Nada mais natural do que
fechar o teatro e celebrar a restauração com os seus.
Ao meu lado, minha mulher persistia: "Mas o Brasil tem de mudar".
"Ah, mas vai demorar", continuou a
funcionária, já irritada com nossa incompreensão das regras do jogo no
país.
Foi então que ponderei à minha tutora que a situação que ela descrevia
parecia configurar o crime de que trata o inciso 3º do artigo 10 da Lei de
Improbidade Administrativa. Essa observação inesperada acabou a conversa. Não havendo encontrado maneira
de vender-nos as entradas, chamaram-nos, furtivamente, para sentar
em assentos de trás. Não consegui,
porém, prestar atenção ao espetáculo,
porque vi à minha frente uma imagem
da arte crucificada, como sempre está,
na cruz da realidade social e do Brasil
afundado, como sempre esteve, em
humilhações de que não sabe como
escapar.
É espinhosa a questão do subsídio à
arte em país pobre e desigual, onde
não se assegurou o atendimento das
necessidades mais básicas. Fortalece-se a justificativa do subsídio quando se evitam os privilégios e se respeita a vocação transformadora da arte.
A burguesia paulistana não precisa de
tanto dinheiro público para vivenciar
tão fraco desafio estético e moral.
Recomendo, em vez de "La Cenerentola", que está a meio caminho da
música de elevador e das novelas da
Globo, "Moisés e Aron" de Schoenberg. Nada seria tão útil aqui quanto a
história, em música intransigente, do
profeta tartamudo e de seu ajudante
esperto e eloquente, lutando contra
um povo vidrado no visível e carente
de fé.
Pensando nessa história, saí cedo do
teatro. Fui parando as pessoas que
passavam por ali para contar o que
havia acontecido e sentir a reação. Um
punhado de gente curiosa e indignada
cercou-me.
A reivindicação do direito impessoal
contra o regime do favor e do privilégio não é desvio moralizante; representa condição para consertar o Brasil. Sem Estado desprivatizado e confiável, não resolveremos nossos problemas econômicos e sociais. Ao contrário dos nossos juízes, comumente
passivos diante dos desmandos do poder, todo mundo na rua o compreendia. Foi essa preocupação o fator mais
importante que levou à desastrada
eleição de Collor. Continua a ser o
ponto mais explosivo da discussão nacional.
Enquanto dentro do teatro São Pedro o drama infantil da gata borralheira caminhava para o seu fim previsível, diante da platéia refestelada e
sonolenta, lá fora, nas sombras da
Barra Funda, o surpreendente acontecia: um pedacinho do país se levantava. "Mande brasa!", começaram a gritar. Vendo os semblantes espantados
e esperançosos à minha volta, tive
momento de felicidade. A energia
anárquica da noite prenunciava a libertação do Brasil.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras
nesta coluna.
E-mail: unger@law.harvard.edu
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