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O diabo anônimo
CARLOS HEITOR CONY
Veneza - Otto Maria Carpeaux gostava de Viena, onde nascera, e a considerava a mais bela de todas as cidades, embora não tivesse boas recordações de lá. Num dos últimos textos que
escreveu fez uma comparação entre
Viena e Veneza. Para ele, Viena era
um endereço, Veneza um cenário.
Penso nele sempre que passo por
aqui. Sim, um cenário de primeiro ou
de último ato. Início ou fim de uma
nação. A Sereníssima República não
serve para nada, a não ser para começar alguma coisa ou para terminá-la.
E é nisso que também penso quando
vejo os palácios do Grande Canal, os
estupendos Tintorettos na Academia
ou a encantadora Madona que Bellini
deixou num dos altares da igreja de
San Zaccharia. Tudo bonito demais
para o homem de hoje, apressado e
farto, que não tem tempo para olhar e,
em certo sentido, nem tempo tem para
viver.
Veneza pede exatamente o que menos se tem: tempo. Tudo é lento, no
ritmo de uma gôndola ou de um adágio do veneziano Antonio Vivaldi.
Não é uma ruína, como Pompéia ou
Cartago, mas é quase. Há urgência em
aproveitar a cidade antes que ela
afunde no lodo da laguna.
Faz tempo que, numa noite de frio,
ouvi um concerto de Benedetto Marcello numa velha igreja desativada,
toda feita de madeira, uma acústica
formidável. O concerto terminou tarde, saí da igreja e me perdi nas ruelas
escuras que formam um labirinto que
tem a ver com o complicado desenho
das paixões humanas. De repente, tive
a sensação de que eu próprio acabara,
que nunca sairia daquela sucessão de
becos sem luz. Era o sobrevivente de
um mundo que acabara e que eu próprio acabara.
Marcello foi um dos músicos desta
cidade, há peças estranhas que ele assinou como "Anônimo Veneziano" e
que são as melhores. Bem, naquele
tempo, havia tempo para curtir o tempo de um veneziano anônimo que
acabou como acabará um dia esta cidade-cenário.
Pior do que cenário, a cidade é hoje
uma passagem. Vou para Pádua, Verona, Milão, Rio, vou para o diabo
que me carregue, carregando eu próprio o diabo anônimo em que o tempo
transforma aqueles que não têm tempo.
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