São Paulo, terça, 31 de março de 1998

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O diabo anônimo

CARLOS HEITOR CONY
Veneza - Otto Maria Carpeaux gostava de Viena, onde nascera, e a considerava a mais bela de todas as cidades, embora não tivesse boas recordações de lá. Num dos últimos textos que escreveu fez uma comparação entre Viena e Veneza. Para ele, Viena era um endereço, Veneza um cenário.
Penso nele sempre que passo por aqui. Sim, um cenário de primeiro ou de último ato. Início ou fim de uma nação. A Sereníssima República não serve para nada, a não ser para começar alguma coisa ou para terminá-la.
E é nisso que também penso quando vejo os palácios do Grande Canal, os estupendos Tintorettos na Academia ou a encantadora Madona que Bellini deixou num dos altares da igreja de San Zaccharia. Tudo bonito demais para o homem de hoje, apressado e farto, que não tem tempo para olhar e, em certo sentido, nem tempo tem para viver.
Veneza pede exatamente o que menos se tem: tempo. Tudo é lento, no ritmo de uma gôndola ou de um adágio do veneziano Antonio Vivaldi. Não é uma ruína, como Pompéia ou Cartago, mas é quase. Há urgência em aproveitar a cidade antes que ela afunde no lodo da laguna.
Faz tempo que, numa noite de frio, ouvi um concerto de Benedetto Marcello numa velha igreja desativada, toda feita de madeira, uma acústica formidável. O concerto terminou tarde, saí da igreja e me perdi nas ruelas escuras que formam um labirinto que tem a ver com o complicado desenho das paixões humanas. De repente, tive a sensação de que eu próprio acabara, que nunca sairia daquela sucessão de becos sem luz. Era o sobrevivente de um mundo que acabara e que eu próprio acabara.
Marcello foi um dos músicos desta cidade, há peças estranhas que ele assinou como "Anônimo Veneziano" e que são as melhores. Bem, naquele tempo, havia tempo para curtir o tempo de um veneziano anônimo que acabou como acabará um dia esta cidade-cenário.
Pior do que cenário, a cidade é hoje uma passagem. Vou para Pádua, Verona, Milão, Rio, vou para o diabo que me carregue, carregando eu próprio o diabo anônimo em que o tempo transforma aqueles que não têm tempo.



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