São Paulo, Quarta-feira, 31 de Março de 1999
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Carta aos torturadores


Talvez a justiça que mais interesse a vítimas da tortura e familiares seja a verdade histórica: trazer à luz os crimes do porão


MARTA NEHRING

Paris, 1974. Na cômoda da sala, encontro duas fotos em preto-e-branco. Numa, um rosto de homem, traços amulatados. Na outra, o mesmo homem, com uma espessa barba negra. Pergunto a minha mãe quem é. Ela diz: "Um traidor". Eu tinha dez anos. Nunca esqueci a cara do cabo Anselmo.
No ano passado, a "Veja" brindou o público com uma entrevista na qual um torturador se declarava orgulhoso de seus feitos. Há pouco, foi a vez de a revista "Época" oferecer-nos, na forma de um furo de reportagem, declarações do famigerado cabo.
Tortura e infiltração foram as armas mais eficientes empregadas pela polícia política e por grupos paramilitares contra as organizações de esquerda nos anos de chumbo que caracterizaram a ditadura militar.
A tortura é um crime hediondo. Num local isolado, longe da vista e dos ouvidos, homens empenham-se em destruir física e espiritualmente um prisioneiro indefeso, num processo que pode durar horas, dias, meses. Muitos presos morrem em silêncio. Outros confessam nomes; indicam endereços que vão resultar em mais pessoas presas e torturadas. Outros, ainda, não apenas confessam como se tornam agentes duplos: retornam ao convívio de seus antigos companheiros para melhor traí-los. Esse é o caso do cabo Anselmo.
Quem foi torturado nunca esquece. Quantos não têm cicatrizes no corpo, doenças crônicas ou deformidades? Quantos, atormentados pela constante lembrança do horror, não se mataram depois de livres? Quantos choram até hoje pai, mãe, companheiros, filhos perdidos? E quem participou de torturas, assassinato e ocultação dos corpos dos militantes políticos esquece?
As declarações do algoz e do traidor levam a crer que não. Do que se vangloriam eles? De não ter culpa. Onde o comum dos mortais (eu e você, leitor) olharia as próprias mãos e veria o rastro de um sangue que nunca será lavado, eles não vêem nada. Bravata?
Só o cabo Anselmo sabe por quantas mortes e quanto horror é responsável. Consta do rol dos seus crimes ter entregue aos cães do Deops a própria mulher, grávida de sete meses. Ela e o bebê foram assassinados.
Tanto estrago o cabo provocou que, uma vez cumprida sua triste missão, foi obrigado a operar o rosto, trocar de nome e sumir. Imensa é a ironia do destino: na ditadura, os militantes de esquerda se exilavam ou entravam na clandestinidade para continuar sendo o que eram -ou seja, para manter sua identidade de combatentes políticos. Já o cabo exila-se em seu próprio país na tentativa de deixar de ser o que é.
Impossível. Todo dia, ele acorda e lá está o espelho, mostrando-lhe o rosto deformado. Todo santo dia, a mulher, o filho, os vizinhos, os colegas de trabalho chamam-no por um nome que -ele sabe- não é o seu. Não existe um novo cabo Anselmo, mas uma máscara. Tão falsa quanto o tom de jactância de suas declarações.
A questão é: o que justifica a máscara e a identidade falsa senão o medo da vingança? Mas, se a vingança tarda, talvez não venha? Onde estão os remanescentes da guerrilha, que deveriam estar apontando uma arma para a testa do traidor? De quando em vez, então, ressurge o cabo, dizendo: "Estou aqui! Não me arrependo!". Falta completar: "Por favor, continuem me odiando, senão eu deixo de fazer sentido!".
Pois fiquem sabendo o cabo e o algoz que os sobreviventes e seus familiares não os procuram porque têm mais o que fazer. Primeiro, não se trata de uma vingança pessoal, mas de fazer justiça -numa democracia, algo feito às claras e de acordo com a lei. No caso, a lei que criou uma comissão especial por meio da qual se conseguiu provar que "desaparecidos", "suicidados" e "atropelados" durante a ditadura foram vítimas de execução sumária ou morreram sob tortura. Muito ainda está por fazer, como encontrar os corpos dos "desaparecidos" e dar-lhes sepultura digna. Um dia chegaremos lá.
Mas talvez a justiça que mais interesse às vítimas da tortura e aos seus familiares seja a verdade histórica. Trazer ao conhecimento do grande público as violências cometidas durante a ditadura, para que os direitos civis nunca mais sejam desrespeitados em nosso país. Trazer à luz os crimes do porão.
É provável que o torturador, assim como o cabo, morra simplesmente de velhice, na impunidade. Depende de a sociedade continuar aceitando ou não uma anistia que beneficiou o assassinato oficial de mulheres grávidas e a tortura de crianças -sim, pois isso aconteceu, apesar de poucos saberem.
Agora, de uma coisa podem ter certeza todos aqueles que colaboraram com a perseguição, a tortura e a morte dos militantes de esquerda: a história já os condenou. Que o cabo Anselmo não durma em paz. Um dia a verdade virá à tona, e seu filho vai se envergonhar de toda a infâmia.


Marta Nehring, 35, é mestranda em teoria literária pela USP (Universidade de São Paulo) e membro da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos. É filha de Norberto Nehring, militante da Aliança Libertadora Nacional morto sob tortura em 1970.



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