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São Paulo, sábado, 31 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O PT deve punir seus membros "radicais"?

NÃO

Fidelidade e disciplina partidárias

RAMEZ TEBET

A crise que se desenvolve nas hostes petistas, a partir da divergência provocada pelo chamado grupo rebelde, abre uma interessante discussão no quadro partidário a respeito de dois conceitos que não estão sendo suficientemente clarificados: a fidelidade e a disciplina partidárias.
A essa altura, já não é possível esconder o temor de que os partidos, por conveniência tática, passem a adotar a mesma postura que vem sendo defendida pela cúpula dirigente do PT no sentido de punir parlamentares que discordam de pontos inseridos na proposta do governo para a reforma previdenciária. Se isso efetivamente ocorrer, conforme já ameaçam lideranças de partidos que integram a base situacionista, cairemos no buraco negro dos expurgos, aberto pela mordaça que se quer colocar na livre expressão parlamentar.
Uma análise rigorosa do estatuto da fidelidade partidária aponta para sua estreita relação com as idas e vindas de parlamentares, fato gerador da pasteurização e da banalização da vida partidária. Ou seja, a fidelidade partidária se faz necessária para a moralização das práticas políticas, quando exige que um parlamentar, eleito por uma determinada sigla, nela permaneça pelo tempo de duração do mandato. Para evitar o engessamento dos eleitos no partido, até se admite sua saída da legenda seis meses antes do próximo pleito.
Não é o caso de fidelidade partidária que atinge o chamado grupo rebelde do PT. A ele se atribui o "pecado" da indisciplina partidária.
Ocorre que indisciplina partidária, quando existe, aplica-se às diretrizes programáticas, ou seja, ao escopo doutrinário dos partidos. Seria infiel, sujeito à punição, o parlamentar que decide transgredir a pregação de um partido, com os programas e linhas de pensamento defendidos perante o eleitorado e aprovados em convenção. O que estamos presenciando, na polêmica que divide os quadros petistas, é uma inversão de posições e valores. "Rebeldes" são aqueles que transgridem as pregações históricas, inclusive as que fundamentaram o discurso da campanha vitoriosa. "Coerentes" são os que defendem as posições registradas pela tradição do partido. Não pode ser outra a lógica para nortear uma decisão partidária sobre expurgo de parlamentares.
A questão é: pode um partido, depois do pleito, mudar de posição doutrinária e desdizer o que foi dito, apagando parte de sua memória? Por conveniência e sentido pragmático, até pode fazer isso, principalmente quando chega ao centro do poder e é instado a fazê-lo por absoluta necessidade de se ajustar à realidade macroeconômica. Daí a punir a coerência de alguns de seus quadros é outra história. Não é possível enxergar punição onde existe coerência de posições. Punir pessoas que pensam hoje como pensavam ontem é um desatino. Se isso ocorrer, quem estará sendo punida é a própria liberdade de expressão, o que, convenhamos, numa democracia ainda incipiente como a nossa, será um agravo à nossa instituição política.
Não defendemos, deve-se dizer, a permanência de um pensamento homogêneo. A política é dinâmica e convive com as circunstâncias, adaptando-se aos novos ciclos. Mudar de posição até faz parte da vida parlamentar. Os partidos, por sua vez, para se fortalecerem, hão de incorporar as novas demandas e interpretar as expectativas das parcelas sociais que representam. Enquanto, porém, não fazem dessa leitura social dogma aprovado em convenção, continuam os partidos a se reger pela doutrina antiga, mesmo que seus dirigentes, pragmaticamente, estejam sinalizando novos discursos, com as metáforas do mundo globalizado.
Tememos que a rigidez do enquadramento que o PT está tentando imprimir a alguns de seus quadros passe, de repente, a ser imitada por outras siglas, o que tornaria as nossas entidades partidárias refratárias ao debate de idéias, à divergência de pontos de vista, à livre expressão do pensamento.
Levando o raciocínio petista um pouco mais adiante, poderemos imaginar diversos partidos fechando questão em torno de temas polêmicos, entre eles, por exemplo, a aprovação da pena de morte. Trata-se de uma temática que divide as bases parlamentares. Como parlamentar contrário à pena de morte, como poderia votar a favor dela, mesmo se meu partido fosse favorável à adoção da lei? Teria que violentar a minha consciência? Teria que estuprar a minha fé?
Entendo que fidelidade ao pensamento é pré-condição para a grandeza partidária. Só os medíocres trocam de pensamento de acordo com as conveniências. Os invertebrados políticos diluem sua representação no desfile de uma insipidez que acaba consumindo o que lhes resta de identidade. É preciso viver como se pensa, caso contrário, acaba-se por pensar como se viveu, já dizia o escritor francês P. Bourget. Por isso mesmo, insisto na idéia de que o Parlamento não pode deixar passar à margem conceitos tão importantes para a prática política como coerência de pensamento, fidelidade e disciplina partidárias.


Ramez Tebet, 66, advogado, é senador pelo PMDB-MS e presidente da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Foi presidente da Casa de 2001 a 2003.


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