São Paulo, segunda-feira, 31 de maio de 2004

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JOSÉ SERRA

Excluindo os excluídos

Se a locomotiva não consegue imprimir maior velocidade ao comboio, vamos desengatar os últimos vagões apinhados de gente e deixá-los para trás: essa é a lógica da desvinculação do salário mínimo dos benefícios menores pagos pela Previdência, cogitada pelo governo do PT nas últimas semanas. Criados dois pisos, um para os salários e outro para o INSS, a intenção seria melhorar o salário mínimo e deixar para trás os proventos dos aposentados e pensionistas mais pobres.
Não seria a primeira vez que, ao longo da história do Brasil, seriam deixados para trás grandes contingentes da população. A primeira grande massa de excluídos foram os ex-escravos. Mais de cem anos depois, a herança dessa discriminação continua a cobrar seu preço: embora metade da população seja branca, cerca de 70% dos pobres e miseráveis são negros ou mestiços.
A segunda leva de excluídos foram os trabalhadores rurais, privados dos direitos sociais conquistados pelos trabalhadores urbanos. A sindicalização rural só iria generalizar-se no início dos anos 60. A previdência rural, criada em 1971, só foi universalizada pela Constituição de 1988. E somente depois de 1992, com a nova lei de custeio da Previdência, a proteção se tornou realidade: o benefício rural passou de meio para um salário mínimo, incluiu as mulheres e ampliou a cobertura de 4 milhões para 6 milhões de pessoas idosas, em apenas dois anos.
A previdência rural se tornou o maior programa social do Brasil. Com o pagamento mensal de um salário mínimo para os trabalhadores aposentados do campo, o país diminuiu substancialmente o quadro geral de pobreza. Estudos do IBGE e do IPEA mostram que os pobres eram 34% da população em 1999. Sem os benefícios previdenciários, seriam 45%.
Mais ainda, nos pequenos municípios, a aposentadoria rural movimenta o comércio e estimula o desenvolvimento microrregional, gerando emprego e renda. Em algumas localidades do Nordeste, 21% da população recebe o benefício. Se ao menos mais uma pessoa da família depender dessa receita, mais de 40% dos habitantes dessas cidadezinhas terão na previdência rural a garantia de uma renda mínima.
Para equilibrar as contas da Previdência, há escolhas difíceis, porém menos perversas do que a de reajustar os benefícios previdenciários a taxas menores do que as do salário mínimo. As causas principais dos graves desequilíbrios são o desemprego e a informalidade. Cerca de 60% dos trabalhadores não contribuem, obrigando a que os 40% que pagam tenham de manter 100% dos aposentados e pensionistas. A solução verdadeira e corajosa começa por aí.
De mais a mais, é tão grande o número de pessoas que vivem de benefícios sociais mínimos ou que têm a expectativa de logo depender deles que, se fosse feita a desvinculação, a polêmica em torno do reajuste anual desse piso seria tão aquecida quanto a atual sobre o reajuste do mínimo. E o desgaste do governo passaria a ser maior: pelo percentual, sempre considerado inadequado, e pela desvinculação.
Enfim, procurar combater a pobreza e a desigualdade mediante a redução do piso previdenciário dos mais pobres significa não olhar o rumo do comboio e o conjunto dos vagões, mas apenas a conta de chegada do guarda-livros da ferrovia. Que, de todo modo, não vai fechar e vai continuar gerando protestos.


José Serra escreve às segundas nesta coluna.


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