São Paulo, domingo, 31 de julho de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Internet estável e segura

JOAQUIM FALCÃO

Assim como ocorreu com o Protocolo de Kyoto, assinado por Clinton e desconfirmado por Bush, o governo norte-americano mais uma vez voltou atrás. Agora, em matéria até mesmo mais estratégica que a do aquecimento global. Em 1998, os EUA assumiram o compromisso de abrir mão do controle que exercem sobre a internet mundial. Há algumas semanas, decidiram manter o controle. Indefinidamente.


Há algumas semanas, os EUA decidiram manter o controle que exercem sobre a internet mundial. Indefinidamente


Esse controle é exercido pelo poder de veto que o Departamento de Comércio Norte-Americano tem sobre as atividades estratégicas da Icann. Icann é uma associação norte-americana sem fins lucrativos que detém a chave tecnológica através da qual são distribuídos os nomes de domínio -os "endereços" na internet-, possibilitando que um e-mail chegue a seu destinatário.
É a organização fundamental da rede. Sem ela, nenhum computador se comunica com outro. Nenhuma empresa com outra. Nenhum país com outro. Eu não poderia enviar por e-mail para a Folha este artigo que agora escrevo. Teria que ser por fax ou correio. Quem controla a Icann controla a internet. Controla o mundo das comunicações.
O poder da Icann é imenso. Ela pode, por exemplo, desconectar qualquer endereço da rede. Pode desconectar um país inteiro, isolá-lo do mundo. Pode impedir que haja comunicação via internet dentro do próprio país, entre seus próprios nacionais. Numa situação extrema de guerra, seu poder é inimaginável. Exército nenhum, economia nenhuma, país nenhum resistiria a uma semana sem internet, sem poder se comunicar consigo mesmo. Não é, pois, sem motivos que o governo norte-americano tomou essa decisão. Está em jogo uma instituição estratégica.
Essa decisão interrompe um processo de multilateralização da governabilidade da internet e impõe a unilateralização. É preocupante. O Congresso norte-americano tinha delegado ao Departamento de Comércio o poder de regular a internet. O governo Clinton, tendo em vista o interesse global envolvido, fez com que o departamento delegasse à Icann -uma entidade com representantes de todos os países interessados- o poder de distribuir e operar os nomes de domínio. E estabeleceu um período de transição para que essa delegação fosse completada.
Esse modelo tinha duas vertentes. Por um lado, assegurava uma governabilidade progressivamente multilateral. Por outro, enfatizava mais as comunidades tecnológicas que os governos. A representação por país não se fazia em termos estritamente oficiais. O Brasil, por exemplo, tem dois membros no Conselho de Administração da Icann, de um total de 18. Não são membros do Itamaraty, mas sim indicados pela comunidade de informática. Essa transição é, agora, interrompida em nome da garantia -afirma o governo Bush- de uma internet "estável e segura". Decisão que decorre da mesma política que inspira unilateralismo no meio ambiente, no protecionismo econômico e na geopolítica.
Na verdade, a transição caminhava perigosamente em direção à criação de um órgão multilateral oficial dos países, inspirado no modelo das Nações Unidas. Esse caminho não é tranqüilo. É polêmico. Traria pelo menos três conseqüências principais.
Primeiro, tornaria o processo decisório muito mais lento, sendo hoje a agilidade da Icann um ativo importante. Segundo, submeteria os Estados Unidos, que inventaram a internet e a própria Icann, a países de quase ou nenhuma experiência tecnológica. Terceiro, organizações das Nações Unidas, como a Organização Mundial do Comércio e a Organização Mundial da Propriedade Industrial, passariam a influir na Icann.
Seria possível criar um terceiro modelo, que escapasse da dicotomia entre um modelo unilateral e o modelo multilateral oficial das Nações Unidas?
Esse é o desafio principal. Um modelo que viabilizasse pelo menos duas autonomias hoje inexistentes. Primeiro, a autonomia financeira. A quase totalidade dos recursos necessários para manter a Icann vem de empresas privadas norte-americanas. Melhor seria se a Icann tivesse sua própria fonte de recursos, por meio do sistema de registro dos nomes de domínio. Segundo, a autonomia tecnológica. Dos 13 servidores-raiz da internet existentes no mundo, dez são operados nos Estados Unidos, submetidos ao controle tecnológico e físico de instituições norte-americanas. Os outros três estão na Inglaterra, no Japão e na Suécia. Uma descentralização tecnológica que permitisse, por exemplo, à América Latina ter em seu território um servidor-raiz, o que daria maior autonomia ao sistema.
Quando os próprios Estados Unidos criaram a Icann, instauraram um processo de invenção institucional inédito na regulação de atividades globalizadas. O que foi extremamente positivo. Afinal, as gerações se distinguem umas das outras e o progresso se faz pela capacidade de inovação e invenção institucional. Seja a nível local, seja a nível global. O modelo Icann tem a virtude da existência e da eficiência. Mas um progressivo processo de invenção global se faz necessário. Resta saber se esse processo será ou não interrompido pela decisão unilateral do governo Bush.

Joaquim Falcão, 61, mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA) e doutor em educação pela Universidade de Genebra (Suíça), professor de direito constitucional e diretor da Escola de Direito da FGV-RJ, é membro do Conselho Nacional de Justiça.


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