São Paulo, terça-feira, 31 de agosto de 2004

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VINICIUS MOTA

O carro de Kerry e os bois de Bush

Os grandes jornais americanos cobrem as eleições presidenciais deste ano com dor de consciência. No passado recente, suspenderam as regras básicas do jornalismo e ajudaram a criar o clima para a invasão do Iraque. A história é conhecida, bem como as expiações que vieram depois.
A dois meses do pleito, cabe perguntar se esses veículos de imprensa não fazem agora um tipo de compensação. Estarão pegando leve com Kerry e carregando nas tintas contra Bush?
Há dez dias, o "New York Times" publicou uma longa reportagem, assinada por dois de seus melhores jornalistas, que demonstrou vínculos entre a campanha de Bush e um grupo de veteranos que acusava Kerry, através de anúncios na TV, de mentir sobre sua biografia no Vietnã. O pequeno escândalo agitou o mercado eleitoral de lá e resultou na demissão de um dos advogados da campanha de Bush.
E quanto a Kerry? Obtém gordas doações de campanha todas dentro da lei? A que grupos econômicos, financeiros e de pressão está ligado o senador democrata? Pouco se sabe.
Kerry se beneficia do sentimento "Fora, Bush" que domina amplo espectro de forças capaz de se fazer ouvir na opinião pública -da centro-direita crítica à esquerda que gosta de depredar lojas do McDonald's.
Nenhum veículo de peso está até agora preocupado em responder sistematicamente à questão mais relevante: a ascensão de Kerry propiciaria mudança fundamental de diretrizes no governo dos Estados Unidos?
O democrata que, no Senado, votou a favor do "Patriot Act" de Bush -uma das legislações que mais danos fizeram aos direitos civis na história americana- terá interesse em atender aos pleitos do ativismo de direitos humanos? Vai se dispor a fazê-lo mesmo sabendo que a maioria da população apóia aquela lei?
O candidato que fala em reforçar o aparato de inteligência antiterror será capaz ou tomará a iniciativa de desmontar a máquina de obter confissões em prisões no Iraque, no Afeganistão, na base de Guantánamo?
O 11 de Setembro não foi uma invenção de George W. Bush. Continuam a existir grupos terroristas com forte interesse -e com acesso aos meios- de atingir alvos americanos pelo mundo. Na história contemporânea, a tortura e seus derivados têm sido um produto comum na luta de dispositivos militares regulares contra um inimigo imerso na população civil.
Que mudança notável pode haver na política para o Iraque quando o que há hoje é um fato consumado?
Na economia, Kerry promete diminuir o déficit público que os anos Bush produziram. Mas isso muito provavelmente ocorrerá caso o republicano vença. Nos EUA, expansões e contrações do gasto e da dívida pública dependem mais do ciclo macroeconômico do que de decisões de governo.
A moralização excessiva da campanha por grupos que identificam em Bush o mal a derrotar é irônica. Em sua forma, difunde o dualismo mais tacanho utilizado à farta pelo republicano. A monotonia desse discurso desfavorece o questionamento político do significado de cada candidatura.
Para uma análise mais distanciada da conjuntura americana, é muito cedo para colocar o carro democrata na frente dos bois republicanos.


Vinicius Mota é editor de Mundo. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Roberto Mangabeira Unger, que escreve às terças-feiras nesta coluna.


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