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VINICIUS MOTA
O carro de Kerry
e os bois de Bush
Os grandes jornais americanos
cobrem as eleições presidenciais
deste ano com dor de consciência. No
passado recente, suspenderam as regras básicas do jornalismo e ajudaram
a criar o clima para a invasão do Iraque. A história é conhecida, bem como as expiações que vieram depois.
A dois meses do pleito, cabe perguntar se esses veículos de imprensa não
fazem agora um tipo de compensação.
Estarão pegando leve com Kerry e carregando nas tintas contra Bush?
Há dez dias, o "New York Times"
publicou uma longa reportagem, assinada por dois de seus melhores jornalistas, que demonstrou vínculos entre
a campanha de Bush e um grupo de
veteranos que acusava Kerry, através
de anúncios na TV, de mentir sobre
sua biografia no Vietnã. O pequeno
escândalo agitou o mercado eleitoral
de lá e resultou na demissão de um
dos advogados da campanha de Bush.
E quanto a Kerry? Obtém gordas
doações de campanha todas dentro da
lei? A que grupos econômicos, financeiros e de pressão está ligado o senador democrata? Pouco se sabe.
Kerry se beneficia do sentimento
"Fora, Bush" que domina amplo espectro de forças capaz de se fazer ouvir na opinião pública -da centro-direita crítica à esquerda que gosta de
depredar lojas do McDonald's.
Nenhum veículo de peso está até
agora preocupado em responder sistematicamente à questão mais relevante: a ascensão de Kerry propiciaria
mudança fundamental de diretrizes
no governo dos Estados Unidos?
O democrata que, no Senado, votou
a favor do "Patriot Act" de Bush
-uma das legislações que mais danos
fizeram aos direitos civis na história
americana- terá interesse em atender aos pleitos do ativismo de direitos
humanos? Vai se dispor a fazê-lo mesmo sabendo que a maioria da população apóia aquela lei?
O candidato que fala em reforçar o
aparato de inteligência antiterror será
capaz ou tomará a iniciativa de desmontar a máquina de obter confissões
em prisões no Iraque, no Afeganistão,
na base de Guantánamo?
O 11 de Setembro não foi uma invenção de George W. Bush. Continuam a
existir grupos terroristas com forte interesse -e com acesso aos meios-
de atingir alvos americanos pelo mundo. Na história contemporânea, a tortura e seus derivados têm sido um
produto comum na luta de dispositivos militares regulares contra um inimigo imerso na população civil.
Que mudança notável pode haver na
política para o Iraque quando o que há
hoje é um fato consumado?
Na economia, Kerry promete diminuir o déficit público que os anos Bush
produziram. Mas isso muito provavelmente ocorrerá caso o republicano
vença. Nos EUA, expansões e contrações do gasto e da dívida pública dependem mais do ciclo macroeconômico do que de decisões de governo.
A moralização excessiva da campanha por grupos que identificam em
Bush o mal a derrotar é irônica. Em
sua forma, difunde o dualismo mais
tacanho utilizado à farta pelo republicano. A monotonia desse discurso
desfavorece o questionamento político do significado de cada candidatura.
Para uma análise mais distanciada
da conjuntura americana, é muito cedo para colocar o carro democrata na
frente dos bois republicanos.
Vinicius Mota é editor de Mundo. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Roberto Mangabeira Unger, que escreve às terças-feiras
nesta coluna.
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