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São Paulo, quarta-feira, 31 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Reflexão sobre humildade e tolerância

OSWALDO GIACOIA JR.

Em períodos de instabilidade, certos acontecimentos de grande relevância e impacto social podem ser vistos como sintomas de graves dificuldades estruturais que enfrentamos, nem sempre nas melhores condições subjetivas e objetivas para encontrar soluções.
Assim, em situações emergenciais, muitas vezes as tábuas de salvação a que em primeiro lugar nos agarramos são as menos aptas a produzir os efeitos desejados. Observo isso sobretudo em relação à atual crise de valores culturais. Ela afeta de tal modo a espinha dorsal de nossas vidas, que nos sentimos aturdidos no conflito entre valorações opostas, privados de referenciais teóricos e práticos universalmente reconhecidos.
Nessa desorientação, assalta-nos a nostalgia das certezas de outrora, que nos faz buscar um ponto de apoio para os processos de deliberação e ação. O problema é que as convicções herdadas da tradição foram lançadas na arena do combate, as referências supremas de valor encontram-se como que desestabilizadas, minando a autoconfiança em nossos julgamentos, avaliações e ações.
Com alguma frequência, não são propriamente as convicções acerca de causas e valores que são abaladas; o que nos desespera são os meios, muitas vezes impróprios, invocados para protegê-los, cujo emprego implica a negação prática de seus conteúdos, como quando se recorre, para tais fins, à prepotência e à jactância, senão mesmo à violência, à barbárie e até ao crime.
Em outros casos, o equívoco consiste em justificar a própria atrocidade em nome de princípios de justiça e autodeterminação, do respeito às diferenças e particularismos, como nos atentados terroristas; ou toma a forma da mistificação ideológica para dissimular genocídios, execuções, violações de direitos.
Em registro distinto, o mesmo conflito se manifesta em crimes brutais cometidos no Brasil no ano que passou.
No final do século 19, Nietzsche diagnosticara essa situação crítica como uma experiência histórica inevitável na sociedade ocidental. "Por que é, pois, doravante necessária a ascensão do niilismo? Porque são nossos próprios valores de até então que nele extraem sua última conclusão; porque o niilismo é a lógica, pensada até o fim, de nossos grandes valores e ideais."
De acordo com a lição de Nietzsche, que conserva para nós uma incômoda atualidade, o niilismo só pode ser bem compreendido como a lógica dessa crise no plano da racionalidade e dos sentimentos. Mais propriamente, como um processo de corrosão interna, que afeta a validade e o poder de coesão conferidos aos antigos valores superiores, ainda na ausência de novas tábuas de valoração. Ora, quando as referências cardinais de uma cultura parecem ter esgotado sua força vinculante, gera-se um vácuo de certezas que torna vacilante tudo o que até então fora estável.
O grande perigo nesses movimentos convulsivos consiste na perda de sobriedade e potência reflexiva. Por nos sentirmos fragilizados e inseguros, sem os pontos de ancoragem e consolos tradicionais, recorrermos desesperadamente a centros de gravidade que não podem dar sustentação, porque se encontram minados em seus alicerces.



Quando as referências cardinais de uma cultura parecem ter esgotado sua força vinculante, gera-se um vácuo de certezas
O fundamentalismo, por exemplo, é o avesso irrefletido desse vazio. Refiro-me à forma tipicamente moderna da compulsão ao fundamento -essa planta sombria, brotada do niilismo radical. Pois o moderno fundamentalismo promete reassegurar e reconfortar, pregando o retorno a um pretenso núcleo puro de crença primitiva, originária, imune ao fluxo da história. Porém o problema visceral do fundamentalismo é a irreflexão, pois se a perda de sentido e validade obedece a uma dinâmica interna aos próprios valores fundamentais em conflito, então o suposto núcleo duro e sagrado da fé não pode permanecer incólume, mas está, ele mesmo, desde sempre em processo de corrosão.
Em outro extremo situa-se o hedonismo característico de nossas sociedades de massa, com sua indústria cultural sofisticada. Diferentemente dos milenarismos fundamentalistas, o culto ao prazer imediato se apresenta como objeto supremo do desejo, num verdadeiro aplastamento do ideal tradicional de felicidade. Para o hedonismo dominante nas sociedades do entretenimento, a felicidade se transforma em frenesi do consumo potencializado pela escalada planetária do progresso tecnológico.
Todavia, como não podemos curar as feridas da existência nem simplesmente abolir dela a dor, a finitude, a morte ou o tédio, então o consumo hedonista não passa de entorpecente para a falta de sentido de uma vida reduzida à rasa dimensão da banalidade.
O auto-ofuscamento do juízo se revela também no modo como pretendemos garantir a tão almejada segurança de nossas pessoas e bens, fantasiando soluções artificiosas para problemas tão graves que, de fato, mal somos capazes de equacionar.
E assim, de frustração em engodo, elidimos uma reflexão em profundidade que, embora sofrida, de fato poderia nos ajudar: será que, nesses sombrios tempos de penúria, não deveríamos retornar a um antigo senso de sabedoria na prudência? Não seria aconselhável evitar tanto a frivolidade quanto os arrebatamentos e a precipitação, moderando expectativas e contendo a ansiedade? Se for assim, então não são nem as certezas pretensamente absolutas do fundamentalismo, nem as promessas douradas de segurança e felicidade totais que podem nos levar ao lugar de onde se vislumbre alguma esperança.
É certo que, nesse caso, nosso consolo não seria pleno, pois que jamais deixaríamos de sofrer com as dores do mundo. Mas talvez aprendêssemos a nos portar mais dignamente no palco da comédia humana, evitando a partição maniqueísta e autocomplacente entre aqueles outros, que são "do mal", e nós, que somos "os bons e os justos". Talvez nos tornássemos mais sóbrios perante a alternância entre luz e trevas radicada em nossa existência, menos inebriados com a própria fantasia de onipotência; e talvez então nos tornássemos mais tolerantes para com o outro e o diferente.
É possível que unicamente no comedimento possamos recuperar algum equilíbrio realista.


Oswaldo Giacoia Júnior, doutor em filosofia pela Universidade Livre de Berlim, é professor associado do Departamento de Filosofia da Unicamp.


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