|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
Reflexão sobre humildade e tolerância
OSWALDO GIACOIA JR.
Em períodos de instabilidade, certos acontecimentos de grande relevância e impacto social podem ser vistos como sintomas de graves dificuldades estruturais que enfrentamos, nem
sempre nas melhores condições subjetivas e objetivas para encontrar soluções.
Assim, em situações emergenciais,
muitas vezes as tábuas de salvação a que
em primeiro lugar nos agarramos são as
menos aptas a produzir os efeitos desejados. Observo isso sobretudo em relação à atual crise de valores culturais. Ela
afeta de tal modo a espinha dorsal de
nossas vidas, que nos sentimos aturdidos no conflito entre valorações opostas, privados de referenciais teóricos e
práticos universalmente reconhecidos.
Nessa desorientação, assalta-nos a
nostalgia das certezas de outrora, que
nos faz buscar um ponto de apoio para
os processos de deliberação e ação. O
problema é que as convicções herdadas
da tradição foram lançadas na arena do
combate, as referências supremas de valor encontram-se como que desestabilizadas, minando a autoconfiança em
nossos julgamentos, avaliações e ações.
Com alguma frequência, não são propriamente as convicções acerca de causas e valores que são abaladas; o que nos
desespera são os meios, muitas vezes
impróprios, invocados para protegê-los, cujo emprego implica a negação
prática de seus conteúdos, como quando se recorre, para tais fins, à prepotência e à jactância, senão mesmo à violência, à barbárie e até ao crime.
Em outros casos, o equívoco consiste
em justificar a própria atrocidade em
nome de princípios de justiça e autodeterminação, do respeito às diferenças e
particularismos, como nos atentados
terroristas; ou toma a forma da mistificação ideológica para dissimular genocídios, execuções, violações de direitos.
Em registro distinto, o mesmo conflito se manifesta em crimes brutais cometidos no Brasil no ano que passou.
No final do século 19, Nietzsche diagnosticara essa situação crítica como
uma experiência histórica inevitável na
sociedade ocidental. "Por que é, pois,
doravante necessária a ascensão do niilismo? Porque são nossos próprios valores de até então que nele extraem sua última conclusão; porque o niilismo é a
lógica, pensada até o fim, de nossos
grandes valores e ideais."
De acordo com a lição de Nietzsche,
que conserva para nós uma incômoda
atualidade, o niilismo só pode ser bem
compreendido como a lógica dessa crise no plano da racionalidade e dos sentimentos. Mais propriamente, como um
processo de corrosão interna, que afeta
a validade e o poder de coesão conferidos aos antigos valores superiores, ainda na ausência de novas tábuas de valoração. Ora, quando as referências cardinais de uma cultura parecem ter esgotado sua força vinculante, gera-se um vácuo de certezas que torna vacilante tudo
o que até então fora estável.
O grande perigo nesses movimentos
convulsivos consiste na perda de sobriedade e potência reflexiva. Por nos
sentirmos fragilizados e inseguros, sem
os pontos de ancoragem e consolos tradicionais, recorrermos desesperadamente a centros de gravidade que não
podem dar sustentação, porque se encontram minados em seus alicerces.
Quando as referências cardinais de uma cultura parecem ter esgotado sua força vinculante, gera-se um vácuo de certezas
|
O fundamentalismo, por exemplo, é o
avesso irrefletido desse vazio. Refiro-me
à forma tipicamente moderna da compulsão ao fundamento -essa planta
sombria, brotada do niilismo radical.
Pois o moderno fundamentalismo promete reassegurar e reconfortar, pregando o retorno a um pretenso núcleo puro
de crença primitiva, originária, imune
ao fluxo da história. Porém o problema
visceral do fundamentalismo é a irreflexão, pois se a perda de sentido e validade obedece a uma dinâmica interna aos
próprios valores fundamentais em conflito, então o suposto núcleo duro e sagrado da fé não pode permanecer incólume, mas está, ele mesmo, desde sempre em processo de corrosão.
Em outro extremo situa-se o hedonismo característico de nossas sociedades
de massa, com sua indústria cultural sofisticada. Diferentemente dos milenarismos fundamentalistas, o culto ao
prazer imediato se apresenta como objeto supremo do desejo, num verdadeiro aplastamento do ideal tradicional de
felicidade. Para o hedonismo dominante nas sociedades do entretenimento, a
felicidade se transforma em frenesi do
consumo potencializado pela escalada
planetária do progresso tecnológico.
Todavia, como não podemos curar as
feridas da existência nem simplesmente
abolir dela a dor, a finitude, a morte ou o
tédio, então o consumo hedonista não
passa de entorpecente para a falta de
sentido de uma vida reduzida à rasa dimensão da banalidade.
O auto-ofuscamento do juízo se revela
também no modo como pretendemos
garantir a tão almejada segurança de
nossas pessoas e bens, fantasiando soluções artificiosas para problemas tão graves que, de fato, mal somos capazes de
equacionar.
E assim, de frustração em engodo, elidimos uma reflexão em profundidade
que, embora sofrida, de fato poderia
nos ajudar: será que, nesses sombrios
tempos de penúria, não deveríamos retornar a um antigo senso de sabedoria
na prudência? Não seria aconselhável
evitar tanto a frivolidade quanto os arrebatamentos e a precipitação, moderando expectativas e contendo a ansiedade? Se for assim, então não são nem
as certezas pretensamente absolutas do
fundamentalismo, nem as promessas
douradas de segurança e felicidade totais que podem nos levar ao lugar de onde se vislumbre alguma esperança.
É certo que, nesse caso, nosso consolo
não seria pleno, pois que jamais deixaríamos de sofrer com as dores do mundo. Mas talvez aprendêssemos a nos
portar mais dignamente no palco da comédia humana, evitando a partição maniqueísta e autocomplacente entre
aqueles outros, que são "do mal", e nós,
que somos "os bons e os justos". Talvez
nos tornássemos mais sóbrios perante a
alternância entre luz e trevas radicada
em nossa existência, menos inebriados
com a própria fantasia de onipotência; e
talvez então nos tornássemos mais tolerantes para com o outro e o diferente.
É possível que unicamente no comedimento possamos recuperar algum
equilíbrio realista.
Oswaldo Giacoia Júnior, doutor em filosofia
pela Universidade Livre de Berlim, é professor
associado do Departamento de Filosofia da Unicamp.
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Washington Olivetto: Pode me chamar de Poliana Próximo Texto: Painel do Leitor Índice
|