São Paulo, domingo, 31 de dezembro de 2006

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Falta de Estado

Milícias, atentados, vítimas civis: como atesta o próprio vocabulário, a crise na segurança mudou de patamar

DEPOIS das ondas de terror vividas no Estado de São Paulo nos meses de maio, julho e agosto, os bárbaros atentados ocorridos no Rio de Janeiro nestes dias de dezembro vêm como que assinalar, com perversa precisão cronológica, o modo com que 2006 será lembrado na história brasileira mais recente.
Os eventos de vária índole que marcaram o ano na esfera político-eleitoral têm sua importância esmaecida quando comparados a tudo o que veio instituir, a ferro, fogo e sangue, um patamar novo de violência e desagregação nas grandes cidades do país.
O próprio vocabulário utilizado para descrever essa realidade conheceu uma mudança qualitativa. De há muito no noticiário policial, palavras como "chacina" e "massacre" se tornaram corriqueiras. Todavia até recentemente eram apenas nas páginas dedicadas às crises internacionais, aos países varridos pelo extremismo religioso e pela guerra, que se encontrava -como agora no Rio e em São Paulo- o cálculo do "número de civis" mortos a cada atentado.
Conheciam-se, pelo menos desde a década de 1970, os "justiceiros", os "esquadrões da morte". Mas o termo de "milícias", que antes se associava apenas a conflitos como os da África e do Oriente Médio, agora passa ao uso cotidiano no Brasil.
Designa, ao que tudo indica, um tipo mais cristalizado de organização e um espectro mais amplo de atividades. Não se promovem apenas atos isolados de extermínio: ao ocuparem determinado morro ou comunidade, as "milícias" cobram taxas e impostos, explorando o comércio de gás e as ligações de TV a cabo. Rivalizariam com os traficantes, por outro lado, em iniciativas de cunho recreativo e assistencial.
É bastante conhecida a conceituação do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) segundo a qual o Estado moderno se define pelo monopólio dos meios de coação física legítima num determinado território. Dessa ótica, o Estado brasileiro, ao menos em certas áreas de grandes cidades como Rio e São Paulo, dá alarmantes sinais de colapso.
Não é apenas a posse das armas que deixou de ser exclusiva da polícia e do Exército, num ambiente de criminalidade escancarada; em muitas comunidades, também as funções de policiamento, de cobrança de taxas, de atendimento às necessidades sociais e de administração da "justiça" passaram às mãos dos traficantes e das milícias.
Um conluio perverso entre ineficiência, corrupção, descaso e cinismo governamentais faz da população pobre das grandes cidades a vítima principal de uma situação que seria eufemismo classificar apenas como um "surto de criminalidade" ou uma "onda de violência": que não seja ainda o caso -esperemos- de dar-lhe o nome, simplesmente, de guerra civil.


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