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Falta de Estado
Milícias, atentados, vítimas civis: como atesta o próprio vocabulário, a crise na segurança mudou de patamar
DEPOIS das ondas de terror vividas no Estado
de São Paulo nos meses de maio, julho e
agosto, os bárbaros atentados
ocorridos no Rio de Janeiro nestes dias de dezembro vêm como
que assinalar, com perversa precisão cronológica, o modo com
que 2006 será lembrado na história brasileira mais recente.
Os eventos de vária índole que
marcaram o ano na esfera político-eleitoral têm sua importância
esmaecida quando comparados
a tudo o que veio instituir, a ferro, fogo e sangue, um patamar
novo de violência e desagregação
nas grandes cidades do país.
O próprio vocabulário utilizado para descrever essa realidade
conheceu uma mudança qualitativa. De há muito no noticiário
policial, palavras como "chacina"
e "massacre" se tornaram corriqueiras. Todavia até recentemente eram apenas nas páginas
dedicadas às crises internacionais, aos países varridos pelo extremismo religioso e pela guerra,
que se encontrava -como agora
no Rio e em São Paulo- o cálculo
do "número de civis" mortos a
cada atentado.
Conheciam-se, pelo menos
desde a década de 1970, os "justiceiros", os "esquadrões da morte". Mas o termo de "milícias",
que antes se associava apenas a
conflitos como os da África e do
Oriente Médio, agora passa ao
uso cotidiano no Brasil.
Designa, ao que tudo indica,
um tipo mais cristalizado de organização e um espectro mais
amplo de atividades. Não se promovem apenas atos isolados de
extermínio: ao ocuparem determinado morro ou comunidade,
as "milícias" cobram taxas e impostos, explorando o comércio
de gás e as ligações de TV a cabo.
Rivalizariam com os traficantes,
por outro lado, em iniciativas de
cunho recreativo e assistencial.
É bastante conhecida a conceituação do sociólogo alemão Max
Weber (1864-1920) segundo a
qual o Estado moderno se define
pelo monopólio dos meios de
coação física legítima num determinado território. Dessa ótica, o
Estado brasileiro, ao menos em
certas áreas de grandes cidades
como Rio e São Paulo, dá alarmantes sinais de colapso.
Não é apenas a posse das armas
que deixou de ser exclusiva da
polícia e do Exército, num ambiente de criminalidade escancarada; em muitas comunidades,
também as funções de policiamento, de cobrança de taxas, de
atendimento às necessidades sociais e de administração da "justiça" passaram às mãos dos traficantes e das milícias.
Um conluio perverso entre
ineficiência, corrupção, descaso
e cinismo governamentais faz da
população pobre das grandes cidades a vítima principal de uma
situação que seria eufemismo
classificar apenas como um "surto de criminalidade" ou uma
"onda de violência": que não seja
ainda o caso -esperemos- de
dar-lhe o nome, simplesmente,
de guerra civil.
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