São Paulo, quinta, 31 de dezembro de 1998

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Fim de século

OTAVIO FRIAS FILHO

Se revistas prestigiosas abarcam todo o milênio numa só edição, não será tão absurdo resumir um século, mais modestamente, num artigo. E a fisionomia do século 20 está mais do que pronta. O século 21 pode começar no ano 2001, mas esta é a última passagem de ano antes da Grande Passagem, a do cabalístico ano 2000.
Nova York terá sido a capital deste século, como Paris foi a do século 19. Seu oceano central foi o Atlântico, lugar a ser ocupado pelo Pacífico -dizem- no século que vem. Sua arte foi o cinema, sua língua, o inglês. Seus marcos foram duas guerras de proporções nunca vistas e dois experimentos coletivistas brutais e fracassados.
Junto com a Coca-Cola, os emblemas desses experimentos -a foice e o martelo e a cruz gamada- ficarão aderidos à memória do século que termina. Serão vistos, talvez, como momento de imaturidade da então nascente sociedade de massas, ainda incapaz de equilibrar seus impulsos de destruição e conservação.
Chama a atenção que, num século no qual a civilização técnica adquiriu tanta proeminência, seus impactos sobre a vida cotidiana se concentrem nos primeiros 25 anos, época de difusão da luz elétrica, do fonógrafo e depois do rádio, do próprio cinema, do carro, do avião -o apogeu, enfim, da revolução mecânica.
No que é visível, este final de século desaponta as fantasias da ficção científica. Muitas se tornaram tecnicamente realizáveis, mas implausíveis. As que se concretizaram -Internet, celular, TV a cabo- correspondem apenas a uma parte do mundo prometido, por exemplo, no seriado "Os Jetsons", de meados dos anos 60.
Sob a superfície dos acontecimentos, num século que descobriu a trepidação do que é imediato, urgente, processos subterrâneos e persistentes mudaram o perfil da humanidade. Avanços médicos e sanitários contribuíram para quase quadruplicar a população em cem anos; todos os indicadores sociais melhoraram exponencialmente.
Tudo indica que a civilização tecnológica se expande em escala geométrica e que essa expansão acarreta melhoria nos níveis de vida de forma mais ou menos independente dos regimes sociais ou políticos. Esse seria o saldo "otimista" do século 20. O saldo "pessimista" é que os problemas de fundo permanecem.
Os mecanismos de produção de riqueza -a competição, o lucro- parecem incompatíveis, especialmente neste momento, com os mecanismos que permitiriam compartilhá-la. Por mais que tenha surgido um esboço de consciência internacional, as relações entre nações e grupos seguem baseadas em recursos de força.
O século 20 começou com três grandes utopias -o socialismo, a psicanálise e a arte moderna-, que prometiam libertar da escassez, do sofrimento mental (em grande parte, ao menos) e do conformismo. Com todos os seus méritos inegáveis -o antibiótico, a vacina Sabin!-, essas são metas que ficam para um feliz século 21.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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