São Paulo, quinta, 31 de dezembro de 1998

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Ha, ha, ha!

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Ontem, penúltimo dia do ano, acordei com aquilo que os nossos avós chamavam de "maus bofes". Em geral, procuro ficar quieto em dias assim, para fazer menos estrago nos outros e em mim mesmo. Mas hoje, com o assanhamento geral que vai pelo fim-de-ano, não custa praticar uma felonia.
Eis que denuncio o José Simão, estimado escriba da Ilustrada, como plagiário contumaz de Shakespeare. Um dos bordões do Simão é o seu "Rarará!", que comparece em quase todas as suas colunas.
Eis que relia, nesses jucundos dias, o "Otelo", a peça de Shakespeare que mais aprecio. E atentei para esse trecho do quarto ato, quando Iago coloca Otelo escondido num canto, chama Cássio e conversa com ele sobre Bianca, mas de forma tão equívoca que Otelo pensa tratar-se de Desdêmona, sua mulher.
O pérfido Iago (perdoem esse "pérfido", mas, apesar de opiniões e gostos diferentes, todos concordam que Iago é mesmo pérfido) pergunta se é verdade o que ela anda espalhando, ou seja, que vão casar-se. Cássio entende que "ela" é Bianca. Atrás da porta ou da cortina, de acordo com a genialidade do diretor do espetáculo, Otelo pensa que "ela" é Desdêmona.
A dúvida se dissipa: ele é mesmo corno. E, o que é pior, todo mundo sabe. Vamos ao original: "Iago - She gives it out that you shall marry her: do you intend it? Cássio - Ha, ha, ha!".
Simão limita-se a traduzir o ha, ha, ha! para o vernáculo, daí resultando seu Rarará!
Eu queria fazer denúncias menos graves, mais amenas, apropriadas ao momento de júbilo como esse, o do fim-de-ano. Mas outro dia um leitor me acusou mais uma vez de ter plagiado Fernando Pessoa ("Navegar é preciso"). Não disse tal. Disse justamente o contrário: navegar não é preciso. Não é apenas o Simão que rouba de Shakespeare. Fernando Pessoa também meteu a mão na frase que foi dita por Pompeu, 19 séculos antes dele.



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