São Paulo, quinta, 31 de dezembro de 1998

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Estado e nação no cassino global


As bases da mudança estrutural nas relações de poder no país passam pelo que a oposição apresentar à nação


TARSO GENRO

A interdependência subordinada ao capital especulativo comandou o processo político brasileiro neste ano. Toda a pauta reformista do governo também observou as rígidas determinações dos países capitalistas centrais, que, contraditoriamente, reordenam as suas economias para enfrentar aquilo que François Chesnais chamou de "incapacidade de auto-regulação da economia no mercado globalizado".
As privatizações selvagens, a redução dos investimentos sociais, a brutalidade da política de juros (que onera a indústria sem acesso a créditos internacionais) e os compromissos com o FMI caracterizaram o último ano do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. Esses fatores poderão nos levar a uma instabilidade institucional grave em 1999, por razões macroeconômicas e políticas. Ambas, combinadas, podem ser socialmente explosivas.
Razões macroeconômicas: o acordo com o FMI será cumprido só em parte, como sempre ocorreu, e os agentes econômicos produtivos trabalharão em regime de contenção num país em que o desemprego se alastra, principalmente entre os mais jovens e os trabalhadores "idosos". Razões políticas: FHC não tem mais a expectativa do terceiro mandato para agregar uma base parlamentar tão díspar e fisiológica. Consequência: a situação de desequilíbrio poderá gerar uma crise de governabilidade, que excitará ainda mais a veia autoritária "provisória" do presidente.
O novo Congresso -majoritariamente, a base governista-, de olho nas relações políticas que se consolidarão nas eleições do ano 2000, terá sensibilidade para os grandes temas nacionais apenas quando eles tiverem algum tipo de contrapartida nos interesses locais. A coesão política da base do governo, portanto, será mais difícil, o que promoverá o aumento do fisiologismo e a substituição de "programas" ou "princípios" por interesses diretos. Esses interesses estarão relacionados com o cenário de 2002, que começará a ser preparado com as eleições locais.
Penso que as bases de uma mudança estrutural nas relações de poder no país passam pelo que a oposição apresentar à nação num ano de crise profunda. Não se trata de "acelerar" ou não as demandas sociais; estas são e serão permanentes. Enganam-se os que pensam que o vigor das lutas sociais depende prioritariamente das "palavras de ordem" dos partidos, mais ou menos radicais ou conciliadores. O importante para a oposição de esquerda é ter a capacidade de efetuar três movimentos combinados naqueles espaços -institucionais ou não- em que é verdadeiramente construído o imaginário popular numa sociedade moderna.
O primeiro espaço é o dos governos estaduais oposicionistas, segundo as respostas que eles darão à mesma crise que assola o governo federal e que despotencializa o cumprimento das funções públicas do Estado. No próximo ano, intervindo no cenário nacional de maneira articulada, prudente e ofensiva, esses governos, com lideranças decididas, poderão mostrar embrionariamente à sociedade a natureza e a profundidade das nossas diferenças em relação ao governo, reforçando o prestígio da oposição para o ano 2000.
O segundo espaço é o do Parlamento, em que a oposição, à semelhança do que ocorreu na votação da MP das entidades "filantrópicas", poderá ampliar seu leque de relações políticas sem se desfigurar. Conseguindo alianças pontuais, para interferir afirmativamente e defender os direitos da sociedade sem conciliação com o neoliberalismo, a oposição de esquerda poderá dar visibilidade política à sua visão de país, pautando o debate nacional a partir de uma determinada visão de Estado e de um projeto econômico alternativo.
O terceiro espaço é o da intervenção organizada da oposição de esquerda no movimento social. Aqui, ela deverá tensionar para que as demandas fracionárias de cada setor mobilizado ultrapassem seus limites de categoria e se universalizem como propostas de um modelo nacional de desenvolvimento. Nesse modelo, os trabalhadores do "novo" e do "velho" mundo do trabalho têm um papel decisivo, não só como produtores, mas também como suporte político consciente e organizado em torno de um novo contrato social, que privilegie o crescimento econômico, o emprego e a produção.
Na campanha de Lula, ficou claro que, quando o candidato da coligação "União do Povo" falou à nação como um todo, contrapondo à interdependência subordinada ao capital financeiro uma integração cooperativa e soberana do país na nova ordem mundial, ele não só polarizou com o governo FHC, mas também cresceu eleitoralmente, conquistando a confiança e a adesão de boa parte do eleitorado.
Em 99, a questão nacional e a questão do Estado ficarão ainda mais evidentes como decisivas para o futuro do Brasil. O Estado estará fortalecido para viabilizar a dominação do capital financeiro globalizado e enfraquecido para responder aos direitos dos cidadãos. A nação estará ainda mais de joelhos ante a especulação "globalitária". Esses serão os dois grandes temas que influirão nos destinos do país. Se a oposição de esquerda não se preparar para falar sobre eles e fazer propostas, não criará condições políticas e uma coesão majoritária para, no futuro, governar o país.
FHC, que se jactava de ser moderno e progressista, contra uma esquerda que dizia vencida, está claramente na contramão da história. Os dogmas neoliberais, extraídos das lições de Adam Smith e aplicados por ele, enfraquecendo as defesas da nação e substituindo as decisões do Estado pela lógica do mercado desregulado, desgastam-se cada vez mais. É um bom momento para disputarmos a hegemonia e conduzirmos o país a um destino de nação.


Tarso Genro, 51, advogado, foi prefeito de Porto Alegre (RS) de 1993 a 96 e deputado federal de 1989 a 90. É membro do Diretório Nacional do PT e autor de "Na Contramão da Pré-História" e de "Utopia Possível".




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