São Paulo, quinta, 31 de dezembro de 1998

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Do abóbora ao amarelo-limão


É preciso garantir ao consumidor presença ativa e formal nos órgãos de regulação, recheados de burocratas públicos


GILBERTO DUPAS

O ano de 1998 marcou o grande salto na privatização dos serviços públicos do país. Eletricidade e telefonia, setores que atingem diretamente toda a população, completaram grande parte da sua venda ao setor privado, tendo gerado várias dezenas de bilhões de dólares para os cofres do combalido Tesouro.
Esses velhos gigantes estatais também não deverão gerar futuros rombos, a serem pagos pelo infeliz cidadão com impostos, tarifas altas e mau serviço. Como consequência da maior eficiência privada, as filas terminarão, o preço dos serviços cairá; o consumidor, finalmente, será tratado com o respeito que um cliente merece. Contada dessa forma, essa história parece destinada a um final feliz. Só que há outros finais possíveis. Tudo dependerá de ações enérgicas e eficazes do poder público e da grita dos consumidores-eleitores. Caso contrário, esse futuro ainda pode nos reservar muita confusão.
Embora ainda seja muito cedo para críticas duras e comparações, os sinais de perigo já estão por aí. Cético por natureza e experiência, o brasileiro encheu-se de esperança quando, poucos meses após as privatizações, ligou para os serviços de atendimento das novas companhias em busca de rapidez no reparo de uma luz de rua queimada, no conserto de um telefone mudo ou em saber quando um daqueles planos já quitados iria transformar-se em aparelho instalado. Salvo raras exceções, houve decepção e muita irritação.
No caso da telefonia fixa, em São Paulo, apesar de ainda monopolista, o novo concessionário, por enquanto, está trocando atendimento por propaganda. Parece que a grande empresa espanhola, famosa por sua agressividade, resolveu inundar a cidade. Não escaparam traseiras ou pontos de ônibus, outdoors, páginas centrais de revistas. Um blablablá infernal para tentar fixar uma nova imagem, incluindo orelhões tingidos de um chocante amarelo-limão, que em nada favorece a estética de uma pobre São Paulo, já tão maltratada. Dá até saudades do feinho abóbora da velha Telesp. O povão, que não perde oportunidade, dá seu primeiro recado aos recém-chegados: vai corrigindo o "o" com um acento circunflexo.
Por enquanto, porém, a qualidade dos serviços -que na Telesp era ruim- piorou. Informações divulgadas pela Anatel indicam que sua instalação de linhas atrasadas, por exemplo, está quase 60% abaixo das metas comprometidas. Os telefones de atendimento de reclamações também continuam infernais. De concreto, além do amarelo-limão, os anúncios de corte de pessoal, aliás esperados e globais. O jornal "El País" informou que a Telefónica de España negocia com sindicatos um corte de 11 mil a 15 mil pessoas, incluindo Brasil, Argentina, Peru e Chile. Fala-se em greve nacional com solidariedade latino-americana, o que será, no mínimo, curioso e pioneiro.
Na questão das privatizações, não se discute a conveniência de tê-las feito. Elas eram necessárias e oportunas. Mas, para que atinjam seus objetivos e não tenham significado só a economia de alguns meses de juros da dívida interna, serão necessárias muita atenção e absoluta independência das agências reguladoras. E enorme rigor no acompanhamento da concessão, especialmente em setores de pouca ou nenhuma competição. Inclusive porque a crise de 1999 servirá de pretexto para muitas pressões visando renegociar compromissos assumidos nos leilões.
Depois, é preciso garantir ao consumidor presença ativa e formal nos órgãos de regulação, recheados de burocratas públicos. É inconcebível que o indivíduo lesado seja obrigado a procurar os Procons ou as ONGs para tentar defender-se porque a Anatel e a Aneel não o representam. Além disso, lembremo-nos de que não há nenhuma garantia prévia de que parte dos eventuais ganhos de eficiência prometidos pela lógica da privatização beneficie a redução da tarifa e a melhora da competitividade sistêmica do país. Se não houver pressão e fiscalização, eles irão apenas para o bolso dos novos acionistas.
A sociedade que fique, pois, muito atenta e cobre o governo. E o governo que ponha a sociedade dentro dos órgãos reguladores, para que ela ajude a fazer da privatização um sucesso.


Gilberto Dupas, 55, economista, é coordenador da área de assuntos internacionais do Instituto de Estudos Avançados da USP (Universidade de São Paulo) e professor da FDC no Insead (França). Foi secretário de Estado da Agricultura e do Abastecimento e presidente da Caixa Econômica Estadual (governo Montoro).




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