São Paulo, Sábado, 08 de Janeiro de 2000


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Um besteirol historiográfico



Obra sobre o ano 1000 revela despreparo dos autores
HILÁRIO FRANCO JÚNIOR

A chegada do ano 2000 tem sido pretexto para inúmeras iniciativas comemorativas, algumas científicas (congressos e publicações), outras emotivas (seitas apocalípticas fanatizadas e fanatizadoras), outras ainda comerciais, das legítimas (pacotes turísticos sérios) às oportunistas (caso do livro ora comentado).
De fato, seus autores mostram total despreparo para lidar com o tema a que se propuseram. A própria estrutura adotada o revela: para justificar o título "Ano 1000", resolveram partir do chamado Calendário de Trabalho Julius, elaborado por um clérigo da catedral de Canterbury por volta de 1020.
Na verdade, esse tipo de documento -calendário no qual estão figuradas as atividades típicas de cada momento do ano- conheceu poucas variações durante a Idade Média, pois seja do século 9 ou do 13, da Inglaterra ou da França, ele é manifestação de uma sociedade aristocrática e agrária que não podia deixar de representar a semeadura, a colheita, a caça, a guerra etc.
Como o documento que chamam de "base para este livro" fornece poucas informações específicas sobre seu suposto tema, Lacey e Danziger escrevem mais sobre a vida dos anglo-saxões desde sua instalação na Inglaterra no século 5 até sua derrota pelos normandos em 1066, do que propriamente sobre o ano 1000.
O resultado é, portanto, um livro muito mais generalista do que o título indica, o que não impediu que os autores incorressem em várias imprecisões: confundem clero secular e regular; hesitam tanto em relação aos conceitos de escravidão e servidão que elaboram uma pérola do besteirol historiográfico ("escravo é a única maneira de descrever essa servidão"); misturam modalidades artísticas diferentes, como desenho e iluminura; argumentam que no manuscrito o desenho de tamanho exagerado de uma ave poderia vir de "algum erro de perspectiva", esquecendo que esta técnica não estava no rol das intenções de nenhum artista das proximidades do ano 1000; escorregam em anacronismos, como ao pensar que os ataques vikings se constituíram em "trauma nacional", ou ao atribuir aos ingleses do ano 1000 a prática da "livre iniciativa"; formulam uma lei absurda, segundo a qual "todas grandes sociedades foram baseadas no sucesso militar" etc.

Incorreções primárias
Pior ainda, o livro apresenta incorreções primárias. Seus autores parecem não saber que os santos não fazem milagres, apenas os intermedeiam; que, se os santos se transferiram da Terra para o Céu "sem qualquer espera no purgatório", era porque no ano 1000 não existia o conceito de purgatório; que, se os senhores anglo-saxões nunca exerceram o chamado direito da primeira noite, foi pela simples razão que este nunca existiu a não ser na mente de historiadores românticos; que a data da Páscoa não veio dos cálculos do anglo-saxão Beda, o Venerável, no século 8, pois estava determinada desde 325 pelo primeiro Concílio Ecumênico; que não podia haver "canja de galinha" no ano 1000, porque não havia arroz na Inglaterra daquela época; que lá, com em toda a Europa de então, os camponeses pouco comiam pão de trigo; que nenhum "colunista de fofoca no ano 1000 teria aproveitado os escritos de Glaber", porque ele começou a escrever vários anos mais tarde; que os guerreiros não participavam da colheita etc. etc.
Confundindo escrever bem e de forma agradável com fazer gracinhas que desfiguram o sentido histórico do acontecimento narrado, Lacey e Danziger estabelecem comparações vulgares e incorretas.

O Ano Mil - A Vida no Início do Primeiro Milênio
Robert Lacey e Damny Danziger Tradução: Alfredo B. Pinheiros de Lemos Campus (Tel. 0/xx/21/509-5340) 182 págs., R$ 22,00



Por exemplo, para eles o importante sínodo de Whitby é uma "convenção à beira-mar", a hagiografia é "entretenimento, o mais próximo que qualquer documento medieval podia chegar do que hoje se chama de fofoca"; as pessoas identificavam-se com os santos como hoje com astros e estrelas das novelas de televisão; uma amante do rei Eadwig "podia ser a equivalente anglo-saxônica de uma estagiária da Casa Branca"; os navios vikings que atacavam de surpresa a Inglaterra eram como "espaçonaves alienígenas"; a linguagem gestual dos monges tornava seus refeitórios uma "reunião de técnicos de beisebol, todos gesticulando furiosamente"; como os anglo-saxões gostavam de animais, "teriam adorado os animais antropomórficos de Walt Disney". Seguramente os dois jornalistas não representam bem o célebre humor inglês.
Mas eles insistem: em torno do ano 1000 havia "um fluxo de regimes europeus ansiosos em ingressarem no clube cristão", como hoje países "fazendo fila para entrar na Comunidade Européia"; os nobres aproveitavam "a caçada juntos para planejar e ensaiar futuras conquistas, assim como os grandes empresários do século 20 tramam suas aquisições no campo de golfe"; a Inglaterra de 950-1066 era tão violenta quanto a Chicago dos gângsteres da década de 1930 ou a Los Angeles dos traficantes de hoje; uma batalha na época era como um "monte de jogadores de rúgbi disputando a posse da bola... com os dois lados usando a mesma camisa"; os debates teológicos eram como disputas de boxe pelo título de peso-pesado; por ter aperfeiçoado o ábaco, o papa e importante erudito Gerbeto de Aurillac é "o Bill Gates do primeiro milênio". Tudo isso seria engraçado, se não fosse intelectualmente trágico.
Não satisfeitos com tantos erros históricos e piadas sem graça, eles não escondem o chauvinismo de certos setores da sociedade inglesa em relação à Comunidade Européia, projetando no ano 1000 as insatisfações do 2000: a população nativa inglesa eram os "cordiais britânicos"; os anglo-saxões "não conheciam imprecações e obscenidades", "a cultura que se desenvolvia no enevoado canto noroeste da Europa espalhou seus valores por todo o mundo moderno"; olhando para a Europa do ano 1000, podia-se prever sociedades que viriam a estar à frente da Inglaterra e "à custa da Inglaterra".
Apesar disso, "a língua inglesa garantiu a mais universal de todas as conquistas", fato que, Lacey e Danziger não dizem, deveu-se tanto "à força e flexibilidade" do idioma quanto ao poder econômico-militar da Inglaterra no século 19 e dos Estados Unidos no 20.
Em suma, trata-se, para dizer o mínimo, de um livro problemático, o que a tradução brasileira apenas agravou. A começar pelo acréscimo de um subtítulo que não existe na edição inglesa e é um completo contra-senso: "A Vida no Início do Primeiro Milênio". Ora, como o primeiro milênio cristão foi obviamente do ano 1 ao 1000, o início dele está bem distante da época-tema do livro. Isto é, o subtítulo nega o título...
Ademais, a tradução apresenta erros de tipos variados. Há grafias incorretas, como "igreja" com minúscula (que significa templo, edifício religioso) para indicar a Igreja (instituição). Há construções inadequadas, como "um ataque no outono mais sério". Há traduções literais demais, por exemplo, "os doentes iam para Winchester em vastos números". Há opções pouco claras na transposição de nomes próprios: às vezes se utilizam duas formas para o mesmo personagem (Guilherme, o Conquistador/William da Normandia, São Bento/São Benedito), às vezes se mantém a grafia inglesa de palavras de outra origem e que têm correspondentes portugueses consagrados, como a cidade de Reims (e não Rheims) ou o cronista Raul (e não Ralph) Glaber.
Assim, a respeito desse livro deve-se aplicar o conselho de Schopenhauer: "Para ler coisa boa, uma condição é não ler coisa ruim, pois a vida é breve".


Hilário Franco Jr. é professor de história na USP.



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