São Paulo, Sábado, 08 de Janeiro de 2000


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Rorty e as esquerdas

IVAN DOMINGUES

Acaba de sair no Brasil a tradução do livro de Rorty "Achieving Our Country" ("Para Realizar a América"), 11 anos depois de sua publicação nos EUA.
Originariamente um conjunto de três conferências, de leitura agradável, a obra contém uma "Apresentação", que cumpre o papel de introduzir o leitor no pensamento do autor, especialmente ao tratar da concepção pragmatista da verdade, à luz da obra de Rorty e de outros nomes ilustres. A lamentar apenas a falta de indicações mais precisas acerca do tema do livro, deixando o leitor desarmado frente ao que vem a ser a concepção pragmatista da política, e mais ainda diante da idéia de uma esquerda pragmatista, tão cara ao autor.
Os três capítulos que integram o livro recobrem assuntos diversos, envolvendo as análises do legado de Dewey e Whitman para o pensamento de esquerda, o exame da própria posição política de Rorty e ainda seus embates contra os comunistas e uma certa esquerda acadêmica. A idéia-força é que a esquerda americana, refugiada na academia, rompeu a aliança com os sindicatos e, desde então, começou a se afundar, não tendo hoje nenhum projeto para o país.
Depois de percorrer os três capítulos, o leitor brasileiro bem poderá se sentir desconcertado, ao descobrir que a esquerda nos EUA não é a mesma que ele encontra em outras paragens -no Brasil, na América Latina e na Europa. Se Roosevelt pode ser considerado de esquerda, com Johnson e Kennedy; se no vocabulário da esquerda de Rorty coabitam a esquerda reformista, a esquerda radical e a nova esquerda -então ou os vocábulos "esquerda" e "direita" não querem dizer mais nada, ou, no Brasil, Getúlio e Juscelino podem ser considerados homens de esquerda ...
Que o leitor não desconfie, porém, do discernimento ou da sinceridade de Rorty, ele que reconhecidamente é um terceiro-mundista e está sinceramente preocupado com o destino dos esquecidos em seu país e em outros cantos do planeta. Todavia que o leitor não espere desse livro a obra de um grande pensador preocupado em repensar a política e a esquerda, ao propor uma filosofia política pragmatista e de esquerda. Livro bem pensado é com certeza "A Filosofia e o Espelho da Natureza", que se ocupa de outro assunto e que, a meu ver, é a melhor coisa que Rorty escreveu. Já "Para Realizar a América" é um livro de circunstância, com menos vigor intelectual, mas ainda assim inteligente e com o qual temos algo a aprender.
Para bem avaliar o livro, eu proponho que analisemos antes o significado histórico dos vocábulos "esquerda" e "direita", para no fim indagarmos a respeito do possível uso desses vocábulos no contexto do pragmatismo.

Para Realizar a América - O Pensamento de Esquerda no Século 20 na América
Richard Rorty Tradução e apresentação: Paulo Ghiraldelli Jr. DP&A (Tel. 0/xx/21/507-2633) 160 págs., R$ 16,00



Sabe-se que os termos "esquerda" e "direita" foram forjados depois da Revolução Francesa para designar os lugares ocupados (fisicamente) pelos membros das diversas facções na Assembléia: no período da Convenção, o vocábulo esquerda referindo-se aos "Montagnards" (também chamados de Jacobinos), centro à "Plaine" (Planície) e direita aos Girondinos. Sabe-se que pouco depois, na própria França, houve um embaralhamento entre a esquerda e a direita, como bem viu Marx no "18 Brumário" ao aludir à revolução de 1848 e suas contradições: constitucionalistas que conspiram contra a Constituição, revolucionários que viram constitucionalistas, realistas que se aliam aos republicanos e assim por diante. Passados 150 anos, depois que a esquerda comunista abandonou a veleidade de monopolizar o ideário da esquerda, tal embaralhamento só se aprofundou, a ponto de os franceses dizerem hoje que, quando querem um governo de direita, votam na esquerda, fazendo o contrário quando querem um governo de esquerda.
Diante de tal embaralhamento (real) e ante a perplexidade das esquerdas (total), nada mais fácil para um pragmatista (que tudo mitiga) do que mitigar esquerda e direita e propor um centro mitigado, pensado como o verdadeiro "tópos" da política, mais além ou mais aquém da direita e da esquerda.
O mérito do livro de Rorty foi ter evitado esse caminho óbvio. Preferiu manter o divisor de águas entre a esquerda e a direita, ficando de um dos lados da linha divisória. Se ele mitiga alguma coisa, é a própria esquerda americana, ao juntar a esquerda reformista, a esquerda radical e a nova esquerda. Outro mérito, ao manter os pólos esquerda/ direita, é sua tentativa (ainda que sem levá-la às últimas consequências) de pensar os embates da política a partir do que se poderia chamar de agonismo político, tentativa que o leva em defesa da democracia, como sendo aquela forma de organização política que melhor se presta à expressão e operação dos conflitos permanentes das comunidades dos homens, incluído o conflito entre a esquerda e a direita.
Todavia, como não registrar o desconforto de ver o autor (em nome da democracia) partir em defesa da Guerra Fria, sem levar em conta os estragos terríveis que ela acarretou por toda a parte -no Vietnã, na América Latina e em outras paragens? Recentemente, depois do colapso da União Soviética, em artigo publicado no Mais!, pudemos ler de novo Rorty defendendo a democracia, ao apoiar a invasão de Kosovo pelas tropas americanas e seus aliados da Europa.
Espera-se que no Brasil, depois do fim do pensamento único, um dia alguém faça um trabalho parecido, ainda que entre nós a esquerda não seja a mesma.


Ivan Domingues é professor do departamento de filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais.


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