São Paulo, Sábado, 08 de Janeiro de 2000


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Caminhos de Natalia

VILMA ARÊAS

"Comecei a escrever "O Caminho Que Leva à Cidade" em setembro de 1941. Setembro flutuava em minha cabeça, o setembro do campo em Abruzzo".
Assim Natalia Ginzburg inicia um comentário sobre a elaboração de seu primeiro romance.
Resumir o enredo do romance é tarefa ingrata, quase impossível, pois o conflito ao redor do qual se organiza se assemelha ao eixo das narrativas posteriores da autora: profundo e dilacerante, permanece de certo modo em suspensão, como que paralisado. Aqui, o nó que une campo e cidade, pobreza e fantasia -talvez liberdade- é atado pelo fio ao redor dos equívocos, das esperanças frustradas e da incoerência de um casal de primos.
Apaixonados? É preciso audácia para duvidar disso. Digamos, entretanto, possivelmente apaixonados. Mas o sentimento pungente, cujo desenrolar presenciamos e cujo malogro nos deixa na alma um travo de frustração, não possui o encanto ou a integridade desse infalível e eterno condimento dos romances e do erotismo idealizado. Sentimos também insatisfação, talvez impaciência, porque não vemos muito bem num texto paradoxalmente composto de forma límpida. Desse modo, o ponto de vista que organiza qualquer narrativa equilibra-se ou é anulado por uma espécie de ponto de cegueira responsável pelo sentido último do que lemos.
O procedimento abranda-se ou intensifica-se de texto para texto, mas seu poder de velar/revelar nunca é posto inteiramente de lado, fazendo com que os críticos falem de "mecanismos cobertos" (Cesare Garboli), "particular angulação" (Michele Prisco), "realidade úmida, esponjosa" (Calvino), ou figuração "incrivelmente verdadeira, mas inacessível, longínqua, coberta por um vidro" (Montale). De qualquer modo, abala certezas e desafia a atenção do leitor.
Às vezes, como em "O Caminho", ensaio para o extraordinário "Léxico Familiar", Natalia se aproxima da construção alusiva. Mas, já no segundo romance, publicado em 1947, "È Stato Cosí" (sem tradução entre nós), o procedimento surge pronto e acabado. O mote do livro, "gli ho sparato negli occhi" ("atirei nos olhos dele"), organiza o texto do ponto de vista semântico e sintático, pois faz parte da trama -o crime após desavenças num casamento-, e é a seu redor que gira a narrativa. Ao mesmo tempo, a frase é uma espécie de senha para que atravessemos os equívocos, em que boa parte da crítica embarcou, e compreendamos o fundamento do texto, depois e apesar de sermos também atingidos em plenos olhos, enganados pela narração em primeira pessoa, que sinuosamente busca a adesão do leitor.

O Caminho Que Leva à Cidade
Natalia Ginzburg Tradução: Denise Tornimparte (edição bilíngue) Primeira Edição (Tel. 0/xx/11/577-4114) 166 págs., R$ 19,80



Há, portanto, certo corte trágico nesses textos: alguém não vê algo fundamental, cometendo a partir daí os enganos de praxe. A diferença é que, na tragédia clássica, o desfecho reintroduz o protagonista num mundo de valores do qual momentaneamente se afastara pelo erro; no romance não há saída nem recuperação da visão num mundo de valores extraviados.
Aponta-se (M. Rodríguez Rivero) a dívida de Natalia para com a obra de Ivy Compton-Burnett, lida com paixão. A romancista inglesa, das mais originais deste século (também sem tradução entre nós), é implacável cronista da tirania familiar, que transformou em fermento para seus textos claustrofóbicos, em que se cruzam, segundo o crítico, Jane Austen e a tragédia grega, portanto o corte clássico e o romance burguês. A ligação com Ginzburg é clara e desse modo vislumbramos uma pista para a compreensão da forma sofisticada que lhe é peculiar e que certamente exigiu aprendizagem obstinada e observação atenta.
Ainda no capítulo das leituras, Natalia também confessa que lera, antes de seu primeiro romance, "O Caminho do Tabaco", de Erskine Caldwell, do qual "gostara um pouco, não muito". Como estava traduzindo, nessa altura, o "Swann", até pelos títulos somos levados a considerar tantos caminhos. O francês e o americano, que se cruzam e que levam à cidade criada por Natalia, são trilhados de longe, se podemos dizer assim, transfigurados num processo novo por meio da experiência, com os usos possíveis da memória.
Em relação a Proust, ela se aproxima e se afasta, e, inspirando-se no eco das frases que se organizam numa outra espécie de música, determinando em seu movimento a lógica do transcurso temporal. "La petite phrase! -dizia minha mãe. Como é bonito quando (Proust) fala sobre a petite phrase!" ("Léxico Familiar").

A unidade do texto
Ora, a unidade do texto de Natalia Ginzburg é consequência dessa compreensão e do exercício exaustivo que daí deriva. Não se pense, claro, que o resultado coincida com o estilo cintilante de Proust. Sendo de qualidade diferente, essa nova música conserva entretanto um dos traços fortes do mestre, no jogo das "pequenas frases" e no que Walter Benjamin chamou de "uma fisiologia da tagarelice" em relação ao estilo proustiano. Essa opção estética pelo que pode ser considerado sem importância salta do detalhe para o sentido maior da construção. A impressão de instabilidade, a semeadura de pontos cegos no texto de Natalia, marcam a diferença entre a narrativa do século 19 e esta, cuja intenção é mostrar que o homem não tem coerência, que se vê dilacerado num mundo de valores fugidios, cujo sentido não alcança e que a identidade tem de se refazer a cada dia.
Se existem autobiografias estritamente políticas que saltam a micro-história (Giovanni Levi), outras partem desta última como um procedimento para se modificar a escala de observação. É o que vemos em Natalia, que constrói um circuito familiar no qual os traços mais peculiares do fascismo parecem se congelar num modelo de repetição. A construção é, entretanto, minada por dentro mediante uma técnica fria, irônica.
É, portanto, também contra uma determinada forma social que se estrutura essa forma romanesca, distante da hipérbole heróica e desdobrando um espaço à primeira vista caótico ou caprichoso. A construção que aí se ergue é aparentemente pouco sólida, como as casas durante a guerra, que, diz-nos Natalia, podem desabar de um momento para outro.
Há quatro livros da autora traduzidos entre nós: "Léxico Familar" e "Caro Michele" (Paz e Terra), "Todas as Nossas Lembranças" (Art Editora) e "O Caminho que Leva à Cidade". A Primeira Edição teve a excelente idéia de oferecer ao público uma edição bilíngue, mas a tradução escorrega aqui e ali, a revisão é deplorável -enfim, mergulhamos na melancolia.


Vilma Arêas é professora de literatura brasileira na Universidade Estadual de Campinas e autora do livro de contos "A Terceira Perna" (Brasiliense).



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