São Paulo, Sábado, 08 de Janeiro de 2000 |
|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Caminhos de Natalia
VILMA ARÊAS
Há, portanto, certo corte trágico nesses textos: alguém não vê algo fundamental, cometendo a partir daí os enganos de praxe. A diferença é que, na tragédia clássica, o desfecho reintroduz o protagonista num mundo de valores do qual momentaneamente se afastara pelo erro; no romance não há saída nem recuperação da visão num mundo de valores extraviados. Aponta-se (M. Rodríguez Rivero) a dívida de Natalia para com a obra de Ivy Compton-Burnett, lida com paixão. A romancista inglesa, das mais originais deste século (também sem tradução entre nós), é implacável cronista da tirania familiar, que transformou em fermento para seus textos claustrofóbicos, em que se cruzam, segundo o crítico, Jane Austen e a tragédia grega, portanto o corte clássico e o romance burguês. A ligação com Ginzburg é clara e desse modo vislumbramos uma pista para a compreensão da forma sofisticada que lhe é peculiar e que certamente exigiu aprendizagem obstinada e observação atenta. Ainda no capítulo das leituras, Natalia também confessa que lera, antes de seu primeiro romance, "O Caminho do Tabaco", de Erskine Caldwell, do qual "gostara um pouco, não muito". Como estava traduzindo, nessa altura, o "Swann", até pelos títulos somos levados a considerar tantos caminhos. O francês e o americano, que se cruzam e que levam à cidade criada por Natalia, são trilhados de longe, se podemos dizer assim, transfigurados num processo novo por meio da experiência, com os usos possíveis da memória. Em relação a Proust, ela se aproxima e se afasta, e, inspirando-se no eco das frases que se organizam numa outra espécie de música, determinando em seu movimento a lógica do transcurso temporal. "La petite phrase! -dizia minha mãe. Como é bonito quando (Proust) fala sobre a petite phrase!" ("Léxico Familiar"). A unidade do texto Ora, a unidade do texto de Natalia Ginzburg é consequência dessa compreensão e do exercício exaustivo que daí deriva. Não se pense, claro, que o resultado coincida com o estilo cintilante de Proust. Sendo de qualidade diferente, essa nova música conserva entretanto um dos traços fortes do mestre, no jogo das "pequenas frases" e no que Walter Benjamin chamou de "uma fisiologia da tagarelice" em relação ao estilo proustiano. Essa opção estética pelo que pode ser considerado sem importância salta do detalhe para o sentido maior da construção. A impressão de instabilidade, a semeadura de pontos cegos no texto de Natalia, marcam a diferença entre a narrativa do século 19 e esta, cuja intenção é mostrar que o homem não tem coerência, que se vê dilacerado num mundo de valores fugidios, cujo sentido não alcança e que a identidade tem de se refazer a cada dia. Se existem autobiografias estritamente políticas que saltam a micro-história (Giovanni Levi), outras partem desta última como um procedimento para se modificar a escala de observação. É o que vemos em Natalia, que constrói um circuito familiar no qual os traços mais peculiares do fascismo parecem se congelar num modelo de repetição. A construção é, entretanto, minada por dentro mediante uma técnica fria, irônica. É, portanto, também contra uma determinada forma social que se estrutura essa forma romanesca, distante da hipérbole heróica e desdobrando um espaço à primeira vista caótico ou caprichoso. A construção que aí se ergue é aparentemente pouco sólida, como as casas durante a guerra, que, diz-nos Natalia, podem desabar de um momento para outro. Há quatro livros da autora traduzidos entre nós: "Léxico Familar" e "Caro Michele" (Paz e Terra), "Todas as Nossas Lembranças" (Art Editora) e "O Caminho que Leva à Cidade". A Primeira Edição teve a excelente idéia de oferecer ao público uma edição bilíngue, mas a tradução escorrega aqui e ali, a revisão é deplorável -enfim, mergulhamos na melancolia. Vilma Arêas é professora de literatura brasileira na Universidade Estadual de Campinas e autora do livro de contos "A Terceira Perna" (Brasiliense). Texto Anterior: Marcelo Coelho: Tagarelices de Gadda Próximo Texto: Aurora Bernardini: O humor de Pirandello Índice |
|