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As cartas escritas na prisão pelo líder comunista Luiz Carlos Prestes
Uma vida a três
LUIZ WERNECK VIANNA
O inferno existe e há muitas descrições dele nos mitos, nas fabulações da literatura e na vida real, que,
também aí, por vezes, se esmera em
copiar a arte. Ao mergulhar nas páginas das cartas do cárcere -ativas
e passivas- de Luiz Carlos Prestes
com seus familiares, sua mulher Olga, seu advogado, companheiros e
amigos, o leitor pode se preparar
para uma descida ao reino das sombras e se comover com os padecimentos de uma família brasileira
-gaúchos um tanto nostálgicos de
sua cultura e natureza regionais- e
com o amor de um casal que parece
ter saído de romances de cavalaria,
bem no centro dos "anos tormentosos" de 1936 a 1945, os de auge e
queda do nazifascismo.
Contudo, e não se espante o leitor,
nessas cartas não há lugar para lamentos e rendições. São textos de
luta, especialmente a de um homem
e a de uma mulher em defesa dos
seus sentimentos e dignidade como
pessoas, expostos a uma realidade
sem esperança, agravada a cada dia
pela institucionalização da barbárie
nazista na Alemanha, em particular
após o começo da Segunda Guerra
Mundial, em 1939, a queda de Paris
e a invasão da União Soviética, em
1941, tendo, no Brasil, como pano
de fundo, a imposição do Estado
Novo, que nos trouxe, em 1937,
uma Constituição de inspiração
fascista. No caso de Olga, que era de
origem judaica, situação ainda mais
dramatizada pela decisão de Hitler
de proceder à "solução final" da
chamada questão judia.
Luta tão mais difícil porque os
dois personagens principais dessa
saga se encontram em duras condições carcerárias, com sua comunicação epistolar sujeita à censura e
-suprema dificuldade para os dois
amantes- sem domínio do idioma
do outro. Assim, entre todas as barreiras que precisam vencer, a da linguagem é mais uma, impondo aos
dois a penosa tarefa, nas condições
em que se acham, de estudarem um
novo idioma.
É verdade que as cartas de Olga,
por ordem das autoridades carcerárias, tinham que ser escritas em alemão, mas o diálogo entre eles, porque também compreendia comentários recíprocos sobre autores e temas da literatura brasileira e alemã,
exigia o esforço da aprendizagem.
Linguagem contida, a demandar
pleno domínio no uso das palavras
e uma espartana educação dos sentimentos a fim de impedir que a dor
pessoal de um se transferisse para o
outro, é a que compõe um diálogo
marcado pela atitude de mútua
proteção, em que o otimismo não
cede mesmo diante do diagnóstico
mais cruel sobre as suas respectivas
situações. A carta de Olga de 28 de
setembro de 1939 é exemplar do seu
estoicismo, de sua grandeza moral e
da sua sofisticada sensibilidade:
"Meu querido Karli! Após longos
meses, cheios de ansiedade, entregaram-me hoje tuas três cartas de
21/3, 20/6 e 29/6. "Um peso me foi tirado do coração", quando soube
que estás bem de saúde. E como estou orgulhosa com a tua primeira
carta em alemão, que não contém
um erro ortográfico e apenas muito
poucos erros gramaticais. Karli, já
soubeste que há pouco tempo passei dois meses fora do Campo, em
Berlim? Tive que passar essas semanas em "prisão individual" (isolamento, prisão celular) e, com maior
intensidade do que nunca, meus
pensamentos vagavam entre ti e a
nossa querida filhinha (Anita, a filha do casal, nascida no cárcere depois de uma grande movimentação
da opinião pública internacional, já
tinha sido confiada à avó paterna,
Leocádia Prestes).
Uma vida
A pouca esperança numa rápida libertação, que cheguei a alimentar em Berlim, voltei a sepultar depois de meu regresso
ao Campo. (...) Sabes, meu querido Carlos, às vezes digo a mim
mesma que devemos estar preparados para nunca mais nos
voltarmos a ver, apesar de que o
coração proteste contra isso. (...)
Mas existe uma coisa que deves
saber: não deixo que o meu ânimo caia, e o sentimento de minha total unidade contigo me dá
as forças necessárias para isso."
Fora das cartas, também há luta, e o leitor, enquanto as lê, precisa reconstruir o mundo dos
nossos heróis, mal percebido
nas entrelinhas do que escrevem
-Olga, prisioneira em um
campo de concentração nazista,
sujeita a trabalhos forçados,
Prestes, inimigo público número 1 do Estado Novo.
É Olga quem, na mesma carta
de 28/9/ 1939, depois de expor o
diagnóstico pessimista sobre a
sua situação, fala do compromisso com suas companheiras
de campo de concentração:
"Hoje não me sobra mais tempo
para referir-me às suas cartas.
Mas podes estar certo de que ando com uma fisionomia tão feliz
que, ao que parece, as minhas
companheiras extraem daí novas forças e esperanças". Daí
que a leitura dessa extraordinária documentação exija a participação do leitor, que deverá tecer, com suas informações, o cenário de horrores da época, enquanto acompanha, nas cartas,
o cotidiano amargo dos personagens, cada um deles aferrado
aos seus valores mais profundos
e aos sentimentos que nutrem
entre si.
Resistência ao horror
O esforço de Olga para instalar
humanidade em meio ao horror
é uma página épica da capacidade de resistência do ser humano
diante da adversidade, como na
carta de 24/ 9/1937, em que procura compartilhar com seu
companheiro os cuidados com a
criação da filha: "Meu querido
Carli! (com C no original, em
outras cartas Olga usa o K) Há
alguns dias recebi tua carta de 18
de agosto e estou muito triste
porque tua carta de 31 de julho
não me chegou às mãos. Quem
sabe se ainda as receberei. Um
pedaço de papel pode trazer tanta felicidade! Tuas queridas palavras me aquecem o coração.
(...) Felizmente a Anita ainda
pode permanecer comigo. Ainda recentemente, o médico da
prisão desaconselhou a separação, tendo em vista que ainda
estou em condições de amamentá-la. Jamais pensei possuir
tal faculdade de "vaca leiteira".
Podemos nos felicitar com isso,
pois até agora a pequenina não
teve um resfriado. Alegra-me
saber que segues a curva do peso
da pequenina. (...) Podes, portanto, estar tranquilo a este respeito".
Mais à frente, Olga descreve a
Prestes, como se estivesse em
uma "nursery" de bairro londrino, como transcorrem no cárcere, hora por hora, "um dia na
prisão" nazista para ela e sua filha e os sonhos noturnos que,
afinal, a embalam, sobre o que
deveria ser uma vida a três, que,
como se sabe, não haverá.
Em sua última carta a Prestes,
em 05/11/ 1941 -e se pode imaginar o que deveriam ser as condições prisionais de uma revolucionária comunista, ademais de
judia, nos cárceres do nazismo
triunfante na Europa-, a preocupação de Olga se volta inteira
para a sorte do seu companheiro: "A idéia da solidão em que
vives há quase seis anos é (...)
um constante pesadelo que me
aflige". Mas o inferno pode não
ser lugar de queda, e sim de redenção: "Muitas vezes também
não deixo de rir quando penso
na surpresa que te causará a mulher que vais recobrar. Não terá
nada de parecido com a figura
de "boa enfermeira". Mas uma
coisa que tenho aqui especialmente aprendido é a conhecer o
verdadeiro valor de tudo o que é
humano, de toda a elevação e
energia de que é capaz a alma
humana, altura que é, antes de
tudo, para nós mesmos difícil de
alcançar" (carta de 21/9/41).
As cartas de Prestes obedecem
ao mesmo andamento, sendo
que, no seu caso, nas e pelas cartas, tenta realizar os "sonhos noturnos" de Olga de viverem uma
vida a três. Assim, em 30/7/1937,
Prestes indaga a Olga sobre a necessidade de "começar a dar um
pouco de leite de vaca à nossa
pequenina". Tendo organizado,
com a pachorra de um militar,
um quadro com as informações
recolhidas das cartas de Olga,
Prestes acompanha a evolução
do peso de Anita e assim constata que, no mês de junho, a média
mensal caiu em mais de 50%.
Ele indaga: "O que está acontecendo? Sei muito bem que apenas os números não dizem
grande coisa, mas, como acompanho com grande amor todas
as suas informações, penso que
não será inútil chamar a sua
atenção para esse fato. A nossa
pequena já tem mais de oito meses! Imagino a tua alegria com
os novos progressos da nossa
querida. A fatalidade da vida
roubou-me esses grandes prazeres: vê-la começar a falar, vê-la,
pela primeira vez, sentar-se e,
com suas pequeninas mãos nos
joelhos, rir alegremente (...). Ah!
minha querida, como eu seria
feliz se pudesse brincar com a
nossa pequena (...). Já pensaste o
que seria a nossa vida a três?".
Mundo das letras
Prestes e Olga, talvez mais ele
do que ela, inclusive porque estão em contextos políticos distintos -decerto que a situação
alemã era bem mais terrificante
que a brasileira- se esforçam
por construir, no mundo simbólico das letras, uma rotina
conjugal. E esse esforço trágico
de dois desvalidos da sorte em
defenderem os seus sentimentos privados em um momento
de conflagração mundial, mesmo quando tudo parecia irremediavelmente perdido para
eles, fica como mais um exemplo de que a esperança pode desafiar o destino.
Por que vivem de letras, a literatura, e especialmente a poesia,
participa do repertório de temas
evocados ao longo dos diálogos
de Olga e Prestes. Goethe é uma
grande referência para ambos
-um autor bem próprio, por
sinal, para os nossos heróis, que
procuravam alimentar o seu espírito de resistência com os valores da Ilustração celebrados
pelo poeta, dentre os quais a
crença em um caminho de aperfeiçoamento contínuo para o
homem.
Diderot, Molière, Dickens,
Fielding, entre outros, fazem
parte do elenco preferido de
Prestes e, entre os nacionais, denotando um gosto pré-modernista, o culto a Gonçalves Dias,
Castro Alves e aos poetas da Inconfidência, relação a que não
faltam Coelho Neto e Olavo Bilac...
Registre-se, de passagem, que,
apesar de as cartas de Prestes
não revelarem apreço especial
do autor pelos modernistas, ele
soube valorizar, contra o senso
comum de sua época, a contribuição de Mário de Andrade à
cultura nacional, dizendo, por
ocasião de sua morte, que "seu
nome na literatura nacional
equivale ao de Siqueira Campos
em nossas lutas políticas", o que
não é pouco para quem tinha o
antigo tenente da Coluna como
um dos seus heróis favoritos
(carta a Lygia Prestes, de 01/3/
1945). Uma outra observação
sobre as leituras de Prestes não
pode faltar, pelo seu caráter intrigante, pois, relendo "O Misantropo", de Molière, reteve
como frase de grande sabedoria
a que ia em rota oposta ao seu
comportamento de militante revolucionário: "Nenhuma loucura maior do que se pretender
corrigir o mundo" (carta a Lygia
Prestes, de 14/9/1944).
A circulação de sentimentos e
de idéias entre os nossos heróis
reclamou a existência de um pequeno núcleo de familiares e
amigos que, em vários cantos do
mundo, procuravam proteger o
casal e salvar Anita Leocádia das
masmorras do nazismo. Entre
eles, Leocádia, a mãe de Prestes,
que não faz parte desse epistolário, Sobral Pinto, o seu dedicado
advogado, e, sobretudo, Lygia,
irmã de Prestes, que, baseada no
México, não somente viria a
criar Anita como se mostrou a
grande referência afetiva e política do irmão, organizando o
trabalho de solidariedade a ele.
As cartas de Lygia consistem em
um testemunho, sem paralelo
em nossa literatura, de dedicação fraternal.
Etnografia do nazifascismo
A coleção de cartas, em sua cronologia, conforma uma história
contada a partir da expressividade dos sentimentos dos envolvidos, porque da história mesma
não podiam falar, sofrendo apenas os seus efeitos. Mas lê-las é refazer, desse ângulo tão particular
e verdadeiro, a história efetiva daqueles "anos tormentosos"
-uma espécie de etnografia, a
partir dos casos de Prestes e de Olga, de como o nazifascismo se
contrapunha ao inventário dos
valores humanos. A história ruma
para um desenlace, à medida que
os acontecimentos se aproximam
do ano de 1945. De um certo ponto de vista, um desfecho feliz -os
aliados venceram o eixo totalitário do nazifascismo.
Para nós brasileiros também,
porque, com a ida da Força Expedicionária Brasileira aos campos
de guerra europeus para se juntar
às tropas aliadas, criaram-se as
condições para a redemocratização do país. Mas essas cartas focam, sobretudo, o desempenho
das pessoas, e não dos fatos -são
elas e suas vidas exemplares que
nos importam aqui.
O trabalho de Anita Leocádia
Prestes e Lygia Prestes, com o
apoio do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, já nasce
como obra de referência para os
que desejarem entender os soturnos anos em que o nazifascismo
ameaçava dominar o mundo. O
traço mais forte que fica da leitura
dessa correspondência, que tanto
se aproxima, pela altitude ético-moral do que é dito e vivido, às
"Cartas do Cárcere", de Antonio
Gramsci, reside na profundidade
dos sentimentos e dos valores humanos dos seus personagens, inventário a que os brasileiros, desde agora, podem recorrer para
que, na construção de sua identidade coletiva, o especificamente
humano se imponha contra
quaisquer forças que tenham a
pretensão de negá-lo.
Luiz Werneck Vianna é professor de sociologia no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).
Anos Tormentosos,
Correspondência da Prisão
(1936-1945) - Volume 3
Luiz Carlos Prestes
Anita Leocádia Prestes e Lygia Prestes (orgs.)
Paz e Terra (Tel.0/xx/11/3337-8399)
685 págs., R$ 50,00
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