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Sonho, mercadoria e fetiche em Walter Benjamin
Dialética sem labirinto
JEANNE MARIE GAGNEBIN
O livro de Susan Buck-Morss sobre
Walter Benjamin e o "Projeto das Passagens" é uma obra já bastante antiga na
paisagem dos estudos benjaminianos; foi
publicada em 1989, isto é, antes da tradução (recente) do "Passagen-Werk" para o
inglês. Assim também acontece com sua
versão brasileira, já que a editora da
UFMG promete uma tradução da obra de
Benjamin para 2003 ou 2004.
O fato de os comentários de Buck-Morss serem publicados antes da obra do
próprio Benjamin é determinante tanto
para suas qualidades quanto para suas
deficiências. Com efeito, seu maior trunfo consiste em nos oferecer um guia de
orientação no universo labiríntico não só
das "passagens" parisienses, essas galerias cobertas de vidro construídas no século 19 e já obsoletas no seguinte, mas
também no próprio texto de Benjamin:
reunião sem nexo de anotações ou coleção estruturada de observações histórico-filosóficas, cuja chave cabe aos intérpretes atuais descobrir? Livro-mor do
Benjamin maduro ou anexos de um outro livro sobre Baudelaire?
As discussões a esse respeito continuam até hoje. Buck-Morss propõe uma
grade de leitura coerente: "A preocupação política de Benjamin proporciona a
orientação global a cada constelação e
salva o projeto da arbitrariedade".
Eixos principais
Dividido em três partes, o guia de Buck-Morss procura mostrar a gênese temporal e espacial do "Passagen-Werk", os eixos principais de organização do material (história/mito/natureza, igualmente
sonho, mercadoria e fetiche) e o alcance
político e filosófico das análises benjaminianas. A grande riqueza de citações e
ilustrações, em sua maior parte oriundas
do próprio texto de Benjamin, testemunha a incrível multiplicidade de elementos tanto documentais como teóricos que
ele reuniu nessa montagem, não levada a
termo em virtude de sua morte prematura. Buck-Morss chama a atenção para
textos menos conhecidos (resenhas menores, descrições de cidades, ensaios radiofônicos) e acrescenta várias fotografias de arquivos históricos ou de artistas
contemporâneos com o intuito, bem-sucedido, de lançar uma luz atual sobre as
hipóteses formuladas por Benjamin, nos
anos 1930, a respeito da cultura e da política modernas. Seu livro constitui uma
mina de informações na qual o leitor pode garimpar vários pequenos tesouros
disseminados no "Passagen-Werk".
Apesar dessas qualidades inegáveis, os
longos comentários de Buck-Morss são
questionáveis. Desde 1992 (data do centenário do nascimento de Benjamin), houve uma recrudescência de estudos sobre
o autor, cuja importância para a compreensão das transformações tanto da
experiência cotidiana e política quanto
das práticas artísticas atuais continua a
crescer. Mesmo com as limitações inerentes à filologia e ao rigor dos trabalhos
acadêmicos (que Buck-Morss assimila
um pouco rapidamente aos "iniciados"),
essas pesquisas apontam, em sua maioria, para a necessidade de ultrapassar alternativas características da primeira recepção de Benjamin: entre literatura e filosofia, ou entre marxismo e teologia, ou
ainda entre pensamento idealista e pensamento materialista.
O que torna o pensamento de Benjamin instigante -insisto: não só academicamente, mas também politicamente!- é, correndo o risco da ambiguidade,
mesmo da incoerência e da contradição,
o fato de ter ousado pensar a problemática de nossa modernidade a partir de
obras culturais e de fenômenos históricos
concretos e particulares, cuja singularidade questiona as interpretações generalizantes e sistemáticas, ou melhor, coloca
em questão a vontade, o desejo de enclausurar os fenômenos pelo pensamento categorial. Isso não implica que Benjamin fosse um pós-moderno relativista;
significa que ele se apropria de Marx, sem
dúvida, mas também de Freud, Proust,
Kafka e Nietzsche (figuras pouco presentes no livro de Buck-Morss), de Louis
Aragon e de Isaac Luria, sem falar em
Charles Péguy e em Carl Schmitt!
Defender um Benjamin marxista, mesmo que "heterodoxo", como o faz Buck-Morss é totalmente plausível, mesmo
louvável, já que Marx parece ter saído de
moda, talvez por enquanto. Mas não basta repetir e afirmar essa interpretação
contra os colegas pós-modernistas, desconstrucionistas, psicanalíticos, com os
quais a autora polemiza entre as linhas do
seu livro e que, feliz ou infelizmente, o leitor brasileiro desconhece.
A dialética de Benjamin
Gostaríamos de entender mais precisamente em que a dialética de Benjamin se
aproxima da dialética de matiz hegeliano
e marxista, já que Buck-Morss continua
afirmando que há um movimento de tese/antítese e mesmo de síntese no pensamento de Benjamin; e em que ela difere e
por quê: não me parece suficiente que essa diferença seja predominantemente de
"conteúdos" ou de materiais, como se
Benjamin tratasse de restos, resquícios e
ruínas da história quando Hegel (e
Marx?) falavam do seu movimento de
realização.
Sem dúvida, Benjamin foi um dos primeiros pensadores de esquerda a tentar
elaborar, levando a sério a experiência do
fascismo, uma teoria da história que não
repouse mais sobre a (tão bela!) hipótese,
iluminista, hegeliana e marxista, de um
desenvolvimento temporal necessário
em direção ao "progresso". Essa tentativa, até hoje na ordem do dia, acarreta
uma série de dificuldades em relação ao
modelo teórico herdado de Marx; leva à
necessidade de "ler o texto da história"
com recursos emprestados, por que não,
à teologia, sim, e à psicanálise também.
Não só porque teologia e psicanálise
fornecem imagens e conceitos que poderiam ter uma carga emancipatória, como
o messianismo da Cabala ou a crítica à civilização de Freud. Mas também porque
oferecem práticas de leitura e de interpretação que colocam em questão a evidência de um sentido unívoco (aliás, a importância do "Trauerspiel" e da alegoria
barrocos para Benjamin parece surgir do
mesmo questionamento).
As hesitações e paradoxos do pensamento benjaminiano não precisam, portanto, ser atenuados ou silenciados; pelo
contrário, devem ser mostrados e refletidos, já que apontam não só para dificuldades pessoais de um autor, mas também
para as dificuldades de uma reflexão genuinamente engajada, autenticamente de
esquerda, mas não determinista: exigência profundamente atual!
Assim, não acho feliz citar, por exemplo, só uma parte da famosa "Tese Sete"
(das teses "Sobre o Conceito de História"), como o faz Buck-Morss, na qual os
"bens culturais" são comparados por
Benjamin a documentos da barbárie e ao
"botim" ("Beute") carregado junto do
cortejo triunfal dos vencedores -e não
citar também a "Tese Quatro", na qual
Benjamin afirma que as produções espirituais não podem ser reduzidas à representação do "botim" (mesma palavra:
"Beute") que cabe ao vencedor, mas que
devem ser vistas também como sinais de
determinação, de humor, de astúcia, de
coragem contra a dominação.
Tal procedimento unilateral não pode
ser justificado por nenhuma militância
da interpretação; ele vai, até, contra a necessidade política de uma urgente renovação da reflexão sobre cultura por parte
da esquerda atual.
Uma última observação: a tradução de
Ana Luiza Andrade é muito competente
(que trabalho!). Os raros deslizes me parecem provir das dificuldades de tradução das próprias traduções de Benjamin
usadas por Buck-Morss, isto é, da dificuldade de transpor vários conceitos alemães específicos do pensamento benjaminiano (alguns exemplos: "Urgeschichte", "proto-história", traduzido por "ur-história" ou "Urphänomen", "protofenômeno", traduzido por "ur-fenômeno",
"Eingedenken", "rememoração", traduzido às vezes como "memória", outras
como "lembrança", "grübeln", "matutar", traduzido por "ponderar").
Concluo, então, esta breve resenha com
o seguinte apelo: que a publicação futura
em português do "Passagen-Werk" seja a
ocasião para amadores e amantes, conhecedores e especialistas de Walter Benjamin iniciarem uma discussão amigável,
mas rigorosa e filológica, sobre alguns
desses conceitos e imagens-chave do seu
pensamento, palavras que nos dão e ainda nos darão muito o que pensar.
Jeanne Marie Gagnebin é professora de filosofia
na Pontifícia Universidade Católica (SP), de literatura na Unicamp e autora de, entre outros, "História e Narração em Walter Benjamin" (Perspectiva).
Dialética do Olhar
Susan Buck-Morss
Tradução: Ana Luiza Andrade
Ed. UFMG/Argos (Tel. 0/xx/31/3499-4650)
566 págs., R$ 52,00
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