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A guerra da Guerra
Historiador se opõe à visão revisionista da Guerra do Paraguai
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
A historiografia da Guerra da Tríplice
Aliança contra o Paraguai passa por momento de bem-vinda renovação, pelo
menos no Brasil. Nos últimos anos, vários livros e artigos têm sido publicados,
muitos como resultado de teses de doutoramento (1). Outras teses e dissertações
cozinham nos formos dos programas de
pós-graduação. Em matéria de fontes,
ressalte-se, pela riqueza do conteúdo, a
coleção de imagens da guerra -fotos, litos, gravuras, óleos, aquarelas- coletadas por Miguel Angel Cuarterolo, publicada em Buenos Aires em 2000, sob o título "Soldados de la Memoria". O uso intenso da iconografia, uma das novidades
da recente historiografia, já tinha sido feito também por Mauro César Silveira e
André Toral.
No bojo dessa onda de renovação, e como parte dela, foi publicado o livro de
Francisco Doratioto. O autor é doutor em
história das relações internacionais pela
Universidade de Brasília e ensina no Instituto Rio Branco e nas Faculdades Integradas Upis. O texto vem acompanhado
de abundantes referências e notas bibliográficas, mapas e ampla iconografia da
guerra, além de uma útil cronologia.
Narrativa cronológica
Doratioto destoa da historiografia recente, em geral temático-analítica, ao escrever seu livro no formato tradicional de
uma história geral da guerra, oferecendo
uma narrativa cronológica, ao estilo de
textos clássicos, como o de Tasso Fragoso. Mas o livro distingue-se dos textos anteriores à década de 1960 em pelo menos
dois aspectos importantes. Metodologicamente, é muito mais sólido, trabalho
de historiador profissional, resultado de
vasta pesquisa de fontes primárias, documentado abundantemente em 70 páginas de notas e referências. Substantivamente, foge do viés patriótico da historiografia antiga, brasileira, paraguaia ou argentina, boa parte dela escrita por militares. Exemplo paradigmático dessa historiografia é a "História do Exército Brasileiro", em dois volumes, publicada pelo
Estado-Maior do Exército em 1972, em
plena ditadura e com finalidade explicitamente propagandística. Tal tipo de literatura não admitia crítica aos chefes militares brasileiros. A primeira edição do livro
de Victor Izeckson, feita pela Biblioteca
do Exército, sofreu cortes em partes que
criticavam Caxias.
Doratioto não oculta os malfeitos, as
crueldades, as incompetências, as picuinhas, os preconceitos dos comandantes
aliados, sobretudo dos brasileiros, desde
que comprovados por evidência documental devidamente identificada. Um
dos episódios chocantes da guerra foi a
ordem do Conde d'Eu para degolar a sangue-frio o coronel paraguaio Caballero,
indignidade rivalizada pela de López, que
fez açoitar e arrastar durante dias, até a
morte, o irmão, Venâncio López.
A narrativa tradicional não impede que
o livro seja polêmico. Ele o é declaradamente. A guerra particular do autor é
contra o que se chamou de visão revisionista da Guerra. O revisionismo assumiu
no Paraguai a forma de uma reconstrução da figura de López: de ditador autocrático e sanguinário pintado pelos contemporâneos, transformou-se em herói
nacional e campeão da luta antiimperialista.
A ditadura paraguaia apropriou-se dessa reconstrução. Na Argentina e no Brasil, o revisionismo centrou-se na interpretação da guerra como derivação do
imperialismo inglês, do qual o Brasil era
mero instrumento, e na vitimização do
Paraguai, acompanhada da satanização
dos aliados, o Brasil aparecendo como
Belzebu-mor. Os dois principais representantes desse revisionismo, como é sabido, foram León Pomer, na Argentina,
com o livro "A Guerra do Paraguai: A
Grande Tragédia Rio-Platense", e Júlio
José Chiavenato, no Brasil. Durante muito tempo, o livro do último, "Genocídio
Americano", de 1979, apesar de ausência
de pesquisa documental sólida, tornou-se a principal referência sobre a guerra,
inclusive nos cursos de graduação de história. O fenômeno talvez se explique por
ter sido o livro uma espécie de antídoto à
oficiosa "História do Exército".
No Paraguai, a exaltação de López serviu à ditadura, no Brasil, a satanização da
guerra e do comando brasileiro serviu de
arma de combate à ditadura. Em nenhum dos casos a história foi servida. A
revisão do revisionismo, acompanhada
de respeito às fontes, é traço comum da
historiografia recente, tanto no Brasil como no Paraguai. Ao escrever uma história geral da guerra dentro desse espírito,
Doratioto fornece um excelente texto introdutório que poderá substituir com
imensa vantagem, sobretudo nos cursos
de graduação, a literatura revisionista.
As razões da Guerra
O ponto central que costura a narrativa
de Doratioto é o das razões da Guerra.
Em acordo com o ponto de vista que se
torna hoje predominante, o autor volta à
visão abundantemente corroborada pelos documentos da época: rivalidades nacionais, disputas de poder entre os Estados da bacia do Prata foram as causas do
conflito. Na terminologia de hoje, a razão
principal da Guerra teria sido a luta pela
consolidação dos Estados-nacionais na
conturbada região do antigo Vice-Reinado do Prata.
Um Paraguai saído do isolamento a que
o condenara Francia e o primeiro López,
que procurava se afirmar no cenário regional; uma Argentina com ambições
amplas, mas ainda em luta pela unificação nacional, dividida entre Buenos Aires
e a Federação; um Uruguai sem condições de se afirmar por suas próprias forças, fazendo um jogo perigoso entre Brasil e Argentina; e um Brasil preocupado
em conter o avanço argentino, e refém
das pressões dos criadores de gado riograndenses residentes no Uruguai.
No jogo de xadrez que se criou, estranhas alianças se formaram. Aliado natural do Paraguai contra a Argentina, o Brasil se viu ao lado da última contra o primeiro. A rivalidade entre Brasil e Argentina era tão grande que permeou todo o
período de luta e continuou após a guerra. Os comandantes da armada brasileira
se recusavam a atacar Humaitá, com receio de que Mitre buscasse com isso destruir a esquadra imperial. Para muitos
brasileiros e, certamente, para muitos argentinos, a aliança estava toda errada:
Brasil e Argentina eram os dois principais
inimigos.
A explicação do conflito como consequência das lutas pela consolidação dos
Estados nacionais me parece mais adequada para os países platinos. O Brasil
em 1865 já era um Estado-nacional consolidado. A guerra teve, a médio prazo,
consequências para a estabilidade do regime monárquico, mas não creio que se
possa dizer que resultou de qualquer crise. A política intervencionista no Prata
inaugurou-se exatamente quando os
conservadores consolidaram sua hegemonia no final da década de 40 e se sentiram confiantes para agir no cenário explosivo das repúblicas platinas.
Nesse momento, definiu-se a política
brasileira de conter a Argentina via garantia da independência do Uruguai e do
Paraguai. A possível discordância de liberais e progressistas em relação a tal política não pode ser interpretada como crise
do Estado. No que se refere à questão da
escravidão, sem dúvida afetada pela
guerra, ela se apresentava no início como
forte argumento contra o conflito. Constitui mesmo um enigma o fato de o Imperador ter pedido ao Conselho de Estado
em 1867, antes mesmo de se discutir o
uso de libertos como combatentes, que
apreciasse os projetos de São Vicente relativos à libertação do ventre. O pedido
deixou perplexos os conselheiros que
achavam sumamente inoportuno, impolítico, na sugestiva expressão da época,
discutir assunto tão sério enquanto durasse a guerra.
Sendo uma história geral, Doratioto
não aprofunda vários aspectos da Guerra
que continuam a exigir maior atenção
dos historiadores. Em um desses aspectos, poderia ter avançado mais do que fez.
Trata-se da questão do uso de escravos
brasileiros como combatentes. Impera
nesse assunto grande confusão devida
em boa parte a uma questão semântica.
Praticamente todos os que se têm dedicado ao tema não fazem distinção entre negro, escravo e liberto, sobretudo entre os
dois últimos termos. O exemplo mais gritante da confusão é o do livro de Jorge
Prata de Sousa, cujo subtítulo é "Os Escravos Brasileiros na Guerra do Paraguai".
Ora, a primeira frase da introdução diz
que a finalidade do livro é estudar a participação dos "negros forros" na guerra. O
livro inteiro fala dos libertos enviados à
guerra e não de escravos. Doratioto contribui para aumentar a confusão ao falar
da participação dos "escravos libertos"
na guerra. Ora, liberto não é escravo, foi
escravo. O procedimento equivale a dividir os homens entre solteiros e solteiros
casados, computando-se os casados como solteiros.
Campanha racista
A legislação exigia a alforria como condição prévia para o engajamento de escravos. Os dados fornecidos por Paulo
Duarte falam de uns 4.000 libertos em um
total de cerca de 135 mil combatentes, isto
é, 3% da tropa. A participação de negros,
pardos e mulatos, embora impossível de
calcular, era naturalmente muito maior,
fato que deu origem à campanha racista
dos paraguaios contra os "macacos" brasileiros. Os poucos escravos que foram à
guerra o fizeram por terem enganado os
oficiais de recrutamento se apresentando
como libertos ou livres. Foram talvez esses que alguns proprietários procuraram
após a guerra para tentar reavê-los.
Isto significa que não houve combatentes escravos. A questão não é irrelevante.
Não era irrelevante para o governo, que
estava convencido do perigo e da inconveniência de se exigir de escravos que
combatessem pela pátria que não tinham. Também não o era para os libertos. Saber-se livre, lutar talvez ao lado de
proprietários, posto que sujeito aos perigos das batalhas, foram fatores que devem ter exercido poderosa influência no
ânimo do combatente liberto no sentido
de reduzir ou de aumentar sua disposição
de luta contra a escravidão. O estudo do
impacto da guerra sobre os libertos, capítulo importante das relações entre ela e a
escravidão, está ainda por ser feito.
Também faltam ainda análises mais
aprofundadas de muitas questões apenas
tocadas por Doratioto. A historiografia
existente cobre razoavelmente bem o lado militar e político da Guerra, sofrivelmente, a dimensão econômica. A história
social da Guerra, no entanto, apenas começa a ser esboçada, cabendo aqui destacar a contribuição original de André Toral. Penso em temas como a vida dos soldados no fronte, o relacionamento com o
inimigo, as relações entre praças e soldados, entre livres e libertos, a presença maciça de mulheres, esposas e prostitutas,
nos acampamentos, as doenças que afligiam os combatentes -o cólera, as febres, a sarna, a frieira, a gangrena-, a fome que fustigava até as tropas aliadas, o
impacto da guerra sobre os combatentes
comuns, sobretudo os libertos, ao regressarem a suas famílias. Tudo isso constitui
vasto campo de investigação que hoje pode ser feita profissionalmente, mediante
a pesquisa de arquivos e a descoberta de
novas fontes.
"Maldita Guerra" chama-se o livro de
Doratioto, citando expressão usada pelo
Barão de Cotegipe. A mesma expressão
foi usada por Caxias, que detestou cada
momento de seu comando, chocado às
vezes pelos "atos vergonhosos" praticados pela tropa. Seguramente, a expressão, falada ou pensada, ocorreu a muitas
outras pessoas nos quatro países envolvidos. Foram mais de cinco anos de conflito, marcados por batalhas sangrentas,
combates corpo-a-corpo, barbaridades
cometidas por todos as partes envolvidas,
saques, degolas, fuzilamentos, epidemias, fome. Os aliados perderam cerca de
70 mil homens, 50 mil cabendo ao Brasil.
As perdas do Paraguai são impossíveis de
estabelecer, tal a divergência dos estudiosos sobre números, que variam entre
18,5% e 70% da população. De qualquer
modo, a população masculina adulta foi
dizimada.
Ao historiador de hoje cabe perguntar
pelas razões que levaram os governos da
época, aliados e paraguaios, a levar as populações de seus países a tragédia de tal
magnitude, como bem o faz Doratioto, e
analisar as consequências políticas, sociais, econômicas, demográficas do conflito. Como cidadão, ele pode talvez consolar-se com o fato de que, hoje, os mesmos quatro países trocaram a guerra pela
cooperação dentro do Mercosul, exibindo cada qual suas cicatrizes.
Nota:
1. Vejam-se, por exemplo, os livros de Ricardo Salles, "Guerra do Paraguai: Escravidão e Cidadania
na Formação do Exército" (1990); de Mauro César
Silveira, "A Batalha de Papel: A Guerra do Paraguai
Através da Caricatura"; de Jorge Prata de Sousa,
"Escravidão ou Morte"; de Wilma Peres Costa, "A
Espada de Dâmocles: O Exército, a Guerra do Paraguai e a Crise do Império" (os quatro de 1996); de
Victor Izeckson, "O Cerne da Discórdia: A Guerra
do Paraguai e o Núcleo Profissional do Exército
Brasileiro" (1997); de André Toral, "Adeus, Chamigo Brasileiro: Uma História da Guerra do Paraguai"
(1999); e a coletânea organizada por Maria Eduarda C. M. Marques, "A Guerra do Paraguai 130 Anos
Depois" (1995).
José Murilo de Carvalho é professor de história
na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Maldita Guerra - Nova História
da Guerra do Paraguai
Francisco Doratioto
Cia. das Letras (Tel. 0/xx/11/3167-0801)
617 págs., R$ 45,00
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