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As faces do Renascimento
VICTOR KNOLL
Já o título é instigante.
Referido ao Renascimento, sugere para o
primeiro olhar uma
contradição ou, talvez, uma diferença ou, mesmo, uma negação.
De modo algo insolente, insinua
que o Renascimento, visto por
uma certa tradição como um todo
histórico harmonioso, não só manifesta como é feito de contradições. Se assumirmos uma leitura
mais moderada, o título indica ao
menos que estamos diante de um
período da arte e da cultura italianas dilacerado, em que pesam
mais as diferenças que as semelhanças.
Mas "clássico anticlássico" pode também significar uma negação: o que chamamos de "clássico" é na realidade "anticlássico"
-e isso não por mera dialética escolástica. De fato, tais atributos estão presentes na posição de Argan
diante desse arco que vai de Brunelleschi a Bruegel, os quais se alternam e por vezes confluem nas
análises efetuadas ao longo do volume. Digo do volume e não da
obra, porque estamos diante de
uma reunião de artigos e ensaios
-e não um de texto articulado em
termos de princípio, meio e fim-
que encontram no mote "clássico
anticlássico" a sua unidade e isso
apesar de ter decorrido meio século entre o primeiro e o último trabalho.
Com efeito, a leitura que aqui temos desse período é uma resposta,
como diz Argan, ao "que continuamos chamando Renascimento, mais por hábito do que por
convicção" -resposta que procura sacudir a visão que o cristalizou como uma reação às "trevas"
medievais e retorno às "luzes" da
cultura e da arte greco-romana. A
instigação passa do título do livro
às análises nele desenvolvidas.
A postura crítica de Argan talvez
tenha o seu embrião na lição de
Lionello Venturi ao propor um
rompimento com a concepção de
um classicismo renascente como
"a lei primeira e inabalável da arte
ocidental". Argan acrescenta:
"Para abalar a confiança cega no
valor absoluto da tradição clássica
bastava, aliás, a leitura esclarecedora dos "Conceitos Fundamentais", de Woelfflin", que reformulou as categorias do classicismo. A
partir deste ponto, os estudos sobre o maneirismo resultaram no
reconhecimento de um contrapasso entre teoria e prática, "entre as normas do antigo e as exigências do presente". Por que não
projetar essa constatação para os
dois séculos "batizados" pelo
termo Renascimento? "Foi pronunciado então o termo "anticlássico", que paradoxalmente pareceu de imediato mais claro e
mais denso de conteúdos do que
seu contrário; e não demorou a ser
aplicado a Michelangelo, que no
entanto foi, entre todos, o que
mais estudou os antigos."
A noção de Renascença remonta
a Vasari quando empregou o termo "rinascita" referindo-o apenas a um renascimento das artes;
foi com a publicação em 1855 da
"Histoire de France", de Michelet, que o termo passou a estar associado a um período e a tudo o
que lhe concernia. Logo em seguida, em 1860, surge a obra de Burckhardt quando então o termo é
identificado à produção artística e
cultural da Itália dos séculos 15 e
16.
A lição dos antigos
Mas não nos esqueçamos do
"elogio" do mundo grego, um
século antes, feito por Winckelman. Desenha-se o Renascimento
como a recuperação voluntária do
mundo antigo, que Burckhardt
pretendia se constituir no fundamento histórico para uma nova
concepção do mundo. Ora, a nova
concepção que nesse momento estava sendo implementada era a leitura matemática da natureza efetuada pela ciência galilaico-keppleriana e pela implantação de
uma nova ordem de conhecimento que logo a seguir iria resultar no
racionalismo cartesiano.
Assim, Burckhardt postulava
um retorno ao antigo -"clássico"-, sob novas condições históricas que implicavam outra concepção de Natureza, uma nova ordem de conhecimento e até mesmo transformações no quadro de
valores morais e éticos -temos aí
o "anticlássico". O "novo" então não era clássico, isto é, o "renascer" do antigo. Talvez, para
ilustrar o conflito "clássico anticlássico" não seja descabido sugerir que a arte do Renascimento está para a produção artística greco-romana como a tragédia shakespeareana está para os trágicos
gregos. Hamlet e Édipo. Dentro
deste quadro, Argan inicia o primeiro ensaio do volume questionando a pertinência da palavra
"Renascimento" para designar a
atividade artística desenvolvida na
Itália ao longo dos séculos 15 e 16.
Liga-se ao clássico -o "antigo"- o politeísmo da religião
grega, em que o compromisso
com as forças naturais é marcante,
enquanto que o Renascimento, no
seu perfil "anticlássico", está
comprometido com o cristianismo e seu imaginário -com o mistério da Trindade- e com a Natureza como objeto mensurável.
Mas houve um esforço no sentido de estudar e aprender a lição
dos antigos. Dentro de novas condições históricas, havia um
"olho" voltado para a Antiguidade. Eis o Renascimento: contradição, diferença, negação. A leitura
feita por Argan de um Renascimento "clássico anticlássico", do
mesmo modo que tem no confronto entre Brunelleschi e Ghiberti o seu emblema, também o
encontra confirmado no paralelo
que traça entre Rafael e Michelangelo. "Rafael oferece uma arte
acabada como a natureza, Michelangelo uma arte que a transcende." Argan ilustra tal oposição ao
considerar os afrescos dos dois artistas, aos quais agrega uma terceira figura, Leonardo. Deste modo,
"as três maiores personalidades
artísticas definiam três tipos diferentes de artistas como intelectuais: Leonardo, cuja pesquisa artística se prolongava na pesquisa
científica; Michelangelo, que
abordava diretamente grandes
problemas religiosos; Rafael, que
era o artista puro, dedicado a
acrescer o patrimônio e as possibilidades futuras de sua disciplina".
Essa passagem resume o desenho
que Argan faz das várias faces do
Renascimento.
Enquanto reconhece uma espécie de "jogo" entre esses artistas,
oscilando entre o clássico e o anticlássico, e que se se constitui por
assim dizer no "campo criativo"
da Renascença, identifica em Palladio a concomitância daqueles
dois lados. Argan procura mostrar
a "virada" radical estabelecida
por Palladio na história da arquitetura quando substituiu a "invenção" pelo "projeto".
Tendo a expressão "clássico anticlássico" como idéia reguladora, a análise de Argan vasculha a
produção artística de Brunelleschi
a Bruegel. Além dos nomes já citados, temos os artigos dedicados a
Botticelli, Fra Angelico, Giorgione, Bramante e Serlio.
Embora tenha pretendido se alimentar de um neoplatonismo, o
Renascimento -como "movimento" que conjugava o artístico,
o científico e o ético- pautava-se
também por um aristotelismo remanescente do medievo. Quanto à
arte, de modo específico, ao reclamar para si um platonismo, afastava-se de Platão ao assimilar, na
construção do imaginário, a ciência empírico-matemática então
nascente. Assim também, propondo-se recuperar o clássico, trilhava caminhos anticlássicos.
Clássico Anticlássico - O Renascimento de Brunelleschi a Bruegel
Giulio Carlo Argan
Tradução, introdução e notas: Lorenzo Mammì
Companhia das Letras (Tel. 011/866-0801)
498 págs., R$ 43,00
Victor Knoll é professor de estética na USP e
autor de "Paciente Arlequinada" (Polis).
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