São Paulo, Sábado, 08 de Maio de 1999
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As faces do Renascimento

VICTOR KNOLL

Já o título é instigante. Referido ao Renascimento, sugere para o primeiro olhar uma contradição ou, talvez, uma diferença ou, mesmo, uma negação. De modo algo insolente, insinua que o Renascimento, visto por uma certa tradição como um todo histórico harmonioso, não só manifesta como é feito de contradições. Se assumirmos uma leitura mais moderada, o título indica ao menos que estamos diante de um período da arte e da cultura italianas dilacerado, em que pesam mais as diferenças que as semelhanças.
Mas "clássico anticlássico" pode também significar uma negação: o que chamamos de "clássico" é na realidade "anticlássico" -e isso não por mera dialética escolástica. De fato, tais atributos estão presentes na posição de Argan diante desse arco que vai de Brunelleschi a Bruegel, os quais se alternam e por vezes confluem nas análises efetuadas ao longo do volume. Digo do volume e não da obra, porque estamos diante de uma reunião de artigos e ensaios -e não um de texto articulado em termos de princípio, meio e fim- que encontram no mote "clássico anticlássico" a sua unidade e isso apesar de ter decorrido meio século entre o primeiro e o último trabalho.
Com efeito, a leitura que aqui temos desse período é uma resposta, como diz Argan, ao "que continuamos chamando Renascimento, mais por hábito do que por convicção" -resposta que procura sacudir a visão que o cristalizou como uma reação às "trevas" medievais e retorno às "luzes" da cultura e da arte greco-romana. A instigação passa do título do livro às análises nele desenvolvidas.
A postura crítica de Argan talvez tenha o seu embrião na lição de Lionello Venturi ao propor um rompimento com a concepção de um classicismo renascente como "a lei primeira e inabalável da arte ocidental". Argan acrescenta: "Para abalar a confiança cega no valor absoluto da tradição clássica bastava, aliás, a leitura esclarecedora dos "Conceitos Fundamentais", de Woelfflin", que reformulou as categorias do classicismo. A partir deste ponto, os estudos sobre o maneirismo resultaram no reconhecimento de um contrapasso entre teoria e prática, "entre as normas do antigo e as exigências do presente". Por que não projetar essa constatação para os dois séculos "batizados" pelo termo Renascimento? "Foi pronunciado então o termo "anticlássico", que paradoxalmente pareceu de imediato mais claro e mais denso de conteúdos do que seu contrário; e não demorou a ser aplicado a Michelangelo, que no entanto foi, entre todos, o que mais estudou os antigos."
A noção de Renascença remonta a Vasari quando empregou o termo "rinascita" referindo-o apenas a um renascimento das artes; foi com a publicação em 1855 da "Histoire de France", de Michelet, que o termo passou a estar associado a um período e a tudo o que lhe concernia. Logo em seguida, em 1860, surge a obra de Burckhardt quando então o termo é identificado à produção artística e cultural da Itália dos séculos 15 e 16.

A lição dos antigos
Mas não nos esqueçamos do "elogio" do mundo grego, um século antes, feito por Winckelman. Desenha-se o Renascimento como a recuperação voluntária do mundo antigo, que Burckhardt pretendia se constituir no fundamento histórico para uma nova concepção do mundo. Ora, a nova concepção que nesse momento estava sendo implementada era a leitura matemática da natureza efetuada pela ciência galilaico-keppleriana e pela implantação de uma nova ordem de conhecimento que logo a seguir iria resultar no racionalismo cartesiano.
Assim, Burckhardt postulava um retorno ao antigo -"clássico"-, sob novas condições históricas que implicavam outra concepção de Natureza, uma nova ordem de conhecimento e até mesmo transformações no quadro de valores morais e éticos -temos aí o "anticlássico". O "novo" então não era clássico, isto é, o "renascer" do antigo. Talvez, para ilustrar o conflito "clássico anticlássico" não seja descabido sugerir que a arte do Renascimento está para a produção artística greco-romana como a tragédia shakespeareana está para os trágicos gregos. Hamlet e Édipo. Dentro deste quadro, Argan inicia o primeiro ensaio do volume questionando a pertinência da palavra "Renascimento" para designar a atividade artística desenvolvida na Itália ao longo dos séculos 15 e 16. Liga-se ao clássico -o "antigo"- o politeísmo da religião grega, em que o compromisso com as forças naturais é marcante, enquanto que o Renascimento, no seu perfil "anticlássico", está comprometido com o cristianismo e seu imaginário -com o mistério da Trindade- e com a Natureza como objeto mensurável.
Mas houve um esforço no sentido de estudar e aprender a lição dos antigos. Dentro de novas condições históricas, havia um "olho" voltado para a Antiguidade. Eis o Renascimento: contradição, diferença, negação. A leitura feita por Argan de um Renascimento "clássico anticlássico", do mesmo modo que tem no confronto entre Brunelleschi e Ghiberti o seu emblema, também o encontra confirmado no paralelo que traça entre Rafael e Michelangelo. "Rafael oferece uma arte acabada como a natureza, Michelangelo uma arte que a transcende." Argan ilustra tal oposição ao considerar os afrescos dos dois artistas, aos quais agrega uma terceira figura, Leonardo. Deste modo, "as três maiores personalidades artísticas definiam três tipos diferentes de artistas como intelectuais: Leonardo, cuja pesquisa artística se prolongava na pesquisa científica; Michelangelo, que abordava diretamente grandes problemas religiosos; Rafael, que era o artista puro, dedicado a acrescer o patrimônio e as possibilidades futuras de sua disciplina". Essa passagem resume o desenho que Argan faz das várias faces do Renascimento.
Enquanto reconhece uma espécie de "jogo" entre esses artistas, oscilando entre o clássico e o anticlássico, e que se se constitui por assim dizer no "campo criativo" da Renascença, identifica em Palladio a concomitância daqueles dois lados. Argan procura mostrar a "virada" radical estabelecida por Palladio na história da arquitetura quando substituiu a "invenção" pelo "projeto".
Tendo a expressão "clássico anticlássico" como idéia reguladora, a análise de Argan vasculha a produção artística de Brunelleschi a Bruegel. Além dos nomes já citados, temos os artigos dedicados a Botticelli, Fra Angelico, Giorgione, Bramante e Serlio.
Embora tenha pretendido se alimentar de um neoplatonismo, o Renascimento -como "movimento" que conjugava o artístico, o científico e o ético- pautava-se também por um aristotelismo remanescente do medievo. Quanto à arte, de modo específico, ao reclamar para si um platonismo, afastava-se de Platão ao assimilar, na construção do imaginário, a ciência empírico-matemática então nascente. Assim também, propondo-se recuperar o clássico, trilhava caminhos anticlássicos.



Clássico Anticlássico - O Renascimento de Brunelleschi a Bruegel
Giulio Carlo Argan Tradução, introdução e notas: Lorenzo Mammì Companhia das Letras (Tel. 011/866-0801) 498 págs., R$ 43,00




Victor Knoll é professor de estética na USP e autor de "Paciente Arlequinada" (Polis).



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