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Vaso partido
O direito e a lei segundo Thomas Hobbes
Diálogo entre um Filósofo
e um Jurista
Thomas Hobbes
Tradução: Maria Cristina
Guimarães Cupertino
Landy (Tel. 0/xx/11/3088-4776)
192 págs., R$ 25,00
RENATO JANINE RIBEIRO
Este diálogo é a menos conhecida das
obras de Thomas Hobbes que tratam da
política -quase todas, agora, disponíveis em português (1). Merece aplausos a
decisão de traduzi-lo, empresa difícil, a
começar pelo título original em inglês,
"Diálogo entre um Filósofo e um Estudioso do Direito Comum da Inglaterra".
E podemos discutir a obra inteira com
base nessa escolha em português, em especial na parte que traduz a expressão inglesa "Student of the "Common Laws" of
England".
Essas três palavras -estudante e
"common laws"- são problemáticas. A
primeira induz em erro até leitores atilados. Alguns chegam a se referir a esse livro como o diálogo do filósofo com o jovem estudante. Não é o caso. Para Hobbes, todo acesso às leis existentes se resume em estudar o que elas dizem. Qualquer um pode e deve estudá-las, independente de idade ou de erudição. Isso significa duas coisas. Primeira, que o conhecimento das leis não deve ser monopólio
dos advogados. Segunda, que toda pessoa pode advogar.
A própria existência de uma profissão
jurídica assim se vê posta em xeque. Estudar as leis não é uma fase da vida (a juventude), prévia à aquisição de um conhecimento técnico suficiente para se lidar com matéria difícil. Estudá-las é tarefa constante, mas fácil, de todos. A certa
altura do diálogo, o filósofo diz que em
dois meses se pode conhecer o livro inteiro das leis vigentes; e acrescenta: em toda
casa deveria haver um exemplar de tal
obra -da mesma forma, aliás, que a Reforma inglesa municiou cada lar com
uma cópia da Bíblia.
Por isso me parece impróprio o termo
"jurista" para traduzir quem estuda o direito, isto é, idealmente qualquer pessoa
responsável. Aliás, ao longo do texto,
Hobbes usa "lawyer" (advogado). O jurista seria mais que um advogado: alguém profundamente versado em leis.
Chamar alguém de jurista é elogiá-lo.
Ora, para Hobbes é essencial negar a necessidade e validade de um treinamento
jurídico, seja este técnico ou erudito. Sua
obra se constrói, pois, contra a existência
mesma de juristas. Isso tem a ver com sua
leitura da "common law".
"Common law" é o nome do direito anglo-saxônico, geralmente traduzido como direito consuetudinário (ou costumeiro). Em português, pois, acentuamos
o débito do direito inglês com o costume
e os precedentes. Nele, a par da legislação
positiva (leis votadas ou decretadas, mas
sempre explícitas, visíveis), confere-se
amplo espaço à decisão dos tribunais. Daí
que seja tão forte na "common law" o papel do advogado, do juiz, do litígio.
O advogado inglês
Desde a Idade Média, a formação do
advogado inglês era bem diferente da européia. No continente, o advogado estudava um currículo, numa universidade.
Já na Inglaterra, o primeiro curso universitário de direito datará do século 18. Antes disso, quem queria advogar ia a Londres (não a Oxford ou a Cambridge), residir numa hospedaria especial (os "Inns of
Court"). De manhã, assistia aos julgamentos e aprendia, na prática, algo do direito. Almoçava, na hospedaria, com os
colegas, sob a tutela de um advogado experiente, que orientava a discussão sobre
a lei. Não havia sistematização do ensino.
Aprendia-se a lei ouvindo-a falar -procedimento empirista, que a meu ver teve
impacto na formação de uma sociedade e
mesmo de uma filosofia tão tributárias da
experiência.
Também por isso, não havia diploma.
Quando quisesse, qualquer um advogaria -com o risco, claro, de fazê-lo mal. O
uso, nos procedimentos, de uma língua
artificial (o "law french", mistura de francês arcaico com termos ingleses ou latinos) acentuava o caráter arcano de tal conhecimento, transmitido por uma espécie de ritual informal de iniciação.
Hobbes tem tudo contra isso. Pois assim se constitui uma confraria (os juízes
chamam-se uns aos outros "brother")
que se opõe ao rei enquanto legislador.
Jaime 1º, por sinal, queria a lei expressa
em linguagem fácil, acessível. Os advogados e juízes não o aceitaram. Temos que
entender esse debate sem anacronismos.
Hoje, é claro que daríamos razão a Jaime.
Mas a defesa, pelos "common lawyers",
dos mistérios da lei e de seu acesso privilegiado a ela, como mediadores entre a
sociedade e o direito, foi uma das melhores armas para impedir o advento de um
despotismo régio na Inglaterra.
Uma lei de fácil leitura não conheceria
intermediários entre rei e povo, eliminando assim os limites ao poder real. Por
isso Hobbes, defensor de uma soberania
forte e inimigo de qualquer regime misto
-ou seja, inimigo do regime que mais
tarde Montesquieu defenderá em nome
do equilíbrio entre os poderes-, condena o caráter corporativo da profissão jurídica. E também por isso, no diálogo, o filósofo avisa que leu as leis a fim de advogar em seu próprio nome. O melhor sistema, fica implícito, é quando ninguém
precisa de advogado, cada um pleiteando
em causa própria, porque as leis são claras e os procedimentos, simples.
Em outras palavras, Hobbes não é só
contra os juristas. É inimigo da "common
law". A lei, para ele, é essencialmente a lei
positiva, isto é, a que foi editada -em inglês, "statute law". Assim o filósofo sempre leva a discussão para a lei positiva,
traduzida nessa edição como "estatuto".
E diminui o alcance de todo o resto do
sistema legal.
Vejamos como "common", em "common law", significava o direito comum a
todos, em oposição a leis particulares, locais ou relativas ao status de certas pessoas (sacerdotes ou aristocratas, julgados
por tribunais especiais). Já "law" era entendido como direito. Ora, para Hobbes
"law" não é direito, mas lei. A lei manda.
O direito permite. A lei proíbe, o direito
faculta. Assim a própria palavra muda de
sentido, nas mãos de Hobbes. Ele aceita a
"common law", se for a lei editada pelo
rei para a sociedade inteira. Mas, se ela for
isso, nada mais terá a ver com o que os ingleses chamavam e chamam de "common law".
Quando Hobbes era moço e reinava
Jaime, muitos temeram pelo fim da
"common law". "Por toda parte cresce o
poder dos reis e diminuem as liberdades
dos súditos", queixam-se os deputados,
em inícios do século 17. Se o rei se tornasse fonte única do direito e da lei, acabariam as liberdades, em especial a primeira, a de só pagar impostos votados pelo
Parlamento, da qual decorriam todas as
demais.
E era essa a tendência em toda a Europa: as liberdades pareciam coisa velha,
superada. Por isso os ingleses se batem
pela "common law" e pela liberdade.
É o que está em jogo neste livro. Hobbes
argumentava que um abismo separa direito e lei, obrigação e liberdade. Vimos
que os ingleses traduziam "law" como direito. Para Hobbes, esse é um erro palmar, porque a lei manda fazer (ou deixar
de fazer), enquanto o direito permite fazer (ou deixar de fazer). A questão não é
secundária: se a "common law" é lei comum, é porque o rei a edita. Os ingleses
não podem amá-la e amar sua liberdade,
porque lei e liberdade são antônimos.
Mas a tacada de mestre de Hobbes foi
quando ele reduziu o conceito de liberdade a seu sentido físico. A matemática e a
física davam um grau de certeza que devia ser copiado pela nova ciência hobbesiana, a ciência política.
Ora, Hobbes afirma que o sentido próprio (e físico) da liberdade é a ausência de
impedimentos externos. O grande exemplo é a água. Se ela estiver dentro de um
vaso, ficará presa, contida. Quebre-se o
vaso, e ela se liberta.
Mas é óbvio que essa liberdade nada
tem de admirável. Essa a genialidade de
Hobbes: tornar inviável a defesa retórica
da liberdade. Substituindo seu valor retórico por um conceito da física, ele acaba
com a liberdade enquanto objeto de desejo. Só o erro ou a má-fé a consideram
desejável.
Hábil, Hobbes. Mas mal-sucedido. Historicamente, a "common law" prevaleceu. Nosso filósofo teve, em sua filosofia
do direito, um "succès d'estime", não de
público. Coke acertou no futuro, ao aliar
Parlamento e juízes contra o rei. Hobbes
continua sendo o maior filósofo político
inglês e um dos maiores da história. Mas
sua qualidade de pensador acabou mais
ligada a seu insucesso do que, como desejaria ele, a um êxito político. A "common
law" de Coke hoje predomina, nos países
anglo-saxônicos. E mesmo onde a lei positiva constitui o cerne da lei, nas nações
de direito romano, o legislador foi limitado em sua soberania por controles,
"checks and balances", equilíbrios. Hobbes continua valendo, mas pelo que ele
nos dá a pensar. Talvez o fracasso material tenha dessas compensações teóricas.
Nota
1. Temos o "Leviatã", na tradução de João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz N. da Silva (Abril, "Os
Pensadores"), "Do Cidadão", que traduzi (Martins
Fontes; há outra tradução, pela Vozes) e o "Behemoth" (UFMG, por Eunice Ostrensky); falta-nos,
ainda, o "De Corpore Politico".
Renato Janine Ribeiro é professor de filosofia
política na USP e autor de, entre outros livros, "Ao
Leitor sem Medo - Hobbes contra Seu Tempo" (ed.
UFMG).
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