São Paulo, sábado, 08 de junho de 2002

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Celebração da mestiçagem

As origens da globalização nos séculos 15 e 16

O Pensamento Mestiço
Serge Gruzinski
Tradução: Rosa Freire de Aguiar
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/3167-0801)
416 págs, R$ 38,00

RONALDO VAINFAS

Serge Gruzinski é, sem dúvida, um dos mais brilhantes historiadores franceses das últimas décadas, seja pela pesquisa original que desenvolve, desde os anos 1980, sobre a história hispano-americana, sobretudo a do México, seja pela contribuição teórica no campo da história cultural. Seu estudo "La Colonization de l'Imaginaire" (A Colonização do Imaginário, 1988), ainda inédito em português, é um livro clássico. Foi nele que propôs o conceito de "ocidentalização", com enorme erudição e acuidade, para tratar não só da conhecida cruzada espiritual lançada na América após a conquista como, principalmente, das mestiçagens culturais resultantes do contato. Além da vasta obra sobre o México colonial, Gruzinski tem ao menos dois livros em português: "A Passagem do Século - 1480-1520" (Cia. das Letras) e a "História do Novo Mundo", em co-autoria com Carmem Bernand (Edusp).
"O Pensamento Mestiço", cujo original é de 1999, é ensaio que retoma, em boa medida, evidências de sua trajetória de pesquisa sobre o México, acrescido de novos dados e reflexões sobre o mundo europeu, a Ásia, o Brasil, num vaivém que oscila da Idade Média ao ocaso do século 20. Mas é na problemática central do livro, para além das novidades empíricas, que reside a inovação maior, unindo passado e presente, mesclando culturas e imaginários disparatados quanto à origem, formas de cognição e temporalidade. Decodificando "zonas estranhas", para usar a expressão do Lars von Trier, diretor do filme "Europa", várias vezes citado pelo historiador francês.
A questão central do autor é, quando menos, demonstrar a enorme anterioridade disso que hoje se chama de globalização da cultura, sugerindo tratar-se de um processo deslanchado a partir da virada do século 15 para o 16, tempo de conquistas e de expansão planetária européia. O problema de fundo é porém mais sofisticado, com o autor pondo em xeque a corriqueira oposição entre mestiçagens e identidades e sugerindo que a construção histórica das últimas passa, na Europa, como noutras partes do mundo, particularmente na América Latina, por mesclas culturais extremamente complexas.
De todo modo, Gruzinski, sem recuar diante dos desafios teóricos que provoca, expõe com clareza a própria ambivalência do termo "mestiçagem", noção flutuante entre o biológico e o cultural: "O nascimento e a multiplicação de indivíduos mestiços é um fato; o desenvolvimento de formas de vida misturadas, procedendo de fontes múltiplas, é outro, não necessariamente ligado ao anterior".
Na primeira parte do livro, Gruzinski desenvolve amplamente o conceito de mestiçagem cultural, entendendo-o no sentido o mais amplo possível, do econômico ao imaginário, das técnicas às religiosidades. Transita, na demonstração, por espaços e tempos variados, do México quinhentista à Alemanha pós-45, da minúscula Algodoal, na Amazônia brasileira, à Berlim contemporânea.

Uniformização artificiosa
Mas seu pressuposto para estudar as mestiçagens reside, paradoxalmente, na desconfiança do próprio conceito de cultura e, no limite, na sua desconstrução. É o que faz o autor ao criticar a uniformização artificiosa dos historiadores quando explicam a conquista do México, por exemplo, como um conflito cultural entre espanhóis e astecas. Afinal, os ditos "espanhóis" eram, antes de tudo, andaluzes, castelhanos, aragoneses, bascos, assim como eram múltiplos e diversos os povos do México central à época. De resto, o que prevalece nesta parte, a retomada, com novos dados, das pesquisas de Gruzinski sobre o México colonial, o ponto alto residindo na análise da criação de uma identidade mestiça por meio do processo de ocidentalização.
Na segunda parte, a chave da mescla cultural é retomada por meio de fontes iconográficas, empenhando-se o autor em decifrar o que muitos chamaram de "desordem de estilos" no México colonial. Despontam análises minuciosas e originais, como a do macaco e da centaura nos frisos da Casa del Deán, em Puebla, verdadeira hermenêutica dos símbolos que conjugam o antigo imaginário do México à arte do Renascimento italiano.
A terceira parte prossegue na mesma linha, buscando demonstrar a originalidade do pensamento ocidental, genuinamente mestiço, se é que cabe o advérbio, gerado nos dois lados do Atlântico desde o século 16. É tese original que procura desvincular a frequente relação que se faz entre globalização cultural e neoliberalismo e, de quebra, investe contra a idéia de que a ocidentalização foi disruptiva.
"A ocidentalização", diz Gruzinski, "não foi apenas uma irrupção destrutiva ou um empreendimento normalizador, já que participou da criação de formas mestiças de expressão". O mesmo valeria mais amplamente para a colonização ibérica, que para o autor foi "uma negociação ininterrupta, uma sequência de compromissos com a realidade indígena".
O novo livro de Gruzinski é obra de fôlego e de enorme ousadia intelectual. Comparável, pela originalidade das interpretações e investidas contra clichês, aos grandes ensaios sobre a formação cultural ibero-americana, a exemplo do que fez Richard Morse em "O Espelho do Próspero", no caso contrastando a colonização ibérica com a da América anglo-saxônica. Em termos metodológicos, "O Pensamento Mestiço" também lembra muito certos percursos do italiano Carlo Ginzburg, o da "História Noturna", por exemplo. Em ambos vê-se a minuciosa decifração de símbolos inscritos em imaginários muito distantes no tempo e no espaço do mesmo modo que a busca incessante dos hibridismos culturais, numa clara conjugação da história com certas abordagens antropológicas. E não deixa de se aproximar do nosso Gilberto Freyre, ainda que por vias tortuosas, pois Gruzinski celebra, como ele, a mestiçagem e seus resultados.
Mas é preciso dizer que "O Pensamento Mestiço" é livro de difícil leitura, obra destinada a iniciados, para dizer o mínimo. Leitores versados não apenas na história ibero-americana como na arte ocidental, história contemporânea e muitas outras disciplinas ou conhecimentos que o autor exibe à farta. Sobressaem comparações inusitadas, por vezes chocantes, como a do México destroçado por Cortez, em 1521, e a Alemanha após a queda de Hitler, em 1945, bem como constantes referências a filmes, a sequências de alguns roteiros, a exemplo do "Europa" de Von Trier, de "O Livro de Cabeceira", de Peter Greenaway, da filmografia de Wong Kar-wai, cineasta de Hong Kong que dirigiu "Happy Togheter" (1997).
De maneira que o leitor é levado, às vezes forçado, a acompanhar enredos díspares e fragmentados, ora a arte dos tlacuillos, os pintores mexicanos de Ixmiquilpan, ora os dois chineses que tentam sobreviver em Buenos Aires, como no filme de Wong Kar-wai. Enredos históricos que se misturam a enredos fictícios, além de uma pletora de informações que talvez peque pelo excesso e aposte na fragmentação como técnica de narrativa.
No entanto, longe de sinalizar uma exposição caótica, tudo parece obedecer a um plano preconcebido, empenhado em demonstrar as mestiçagens e as formações compósitas não só por meio da discussão conceitual ou da "exempla" mas da própria narrativa fragmentária e hibridizante, como num filme de Greenaway. Goste-se ou não dessa narrativa deliberadamente grotesca -um grotesco ornamental-, Gruzinski cumpre o que já na epígrafe promete ao leitor, e não à toa a retoma como última frase do livro. No caso, um verso de Mário de Andrade que funciona como resumo da ópera: "Sou um tupi tangendo um alaúde".


Ronaldo Vainfas é professor de história moderna da Universidade Federal Fluminense.



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