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Celebração da mestiçagem
As origens da globalização nos séculos 15 e 16
O Pensamento Mestiço
Serge Gruzinski
Tradução: Rosa Freire de Aguiar
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/3167-0801)
416 págs, R$ 38,00
RONALDO VAINFAS
Serge Gruzinski é, sem dúvida, um dos
mais brilhantes historiadores franceses
das últimas décadas, seja pela pesquisa
original que desenvolve, desde os anos
1980, sobre a história hispano-americana,
sobretudo a do México, seja pela contribuição teórica no campo da história cultural. Seu estudo "La Colonization de l'Imaginaire" (A Colonização do Imaginário, 1988), ainda inédito em português, é
um livro clássico. Foi nele que propôs o
conceito de "ocidentalização", com enorme erudição e acuidade, para tratar não
só da conhecida cruzada espiritual lançada na América após a conquista como,
principalmente, das mestiçagens culturais resultantes do contato. Além da vasta
obra sobre o México colonial, Gruzinski
tem ao menos dois livros em português:
"A Passagem do Século - 1480-1520" (Cia.
das Letras) e a "História do Novo Mundo", em co-autoria com Carmem Bernand (Edusp).
"O Pensamento Mestiço", cujo original
é de 1999, é ensaio que retoma, em boa
medida, evidências de sua trajetória de
pesquisa sobre o México, acrescido de
novos dados e reflexões sobre o mundo
europeu, a Ásia, o Brasil, num vaivém
que oscila da Idade Média ao ocaso do século 20. Mas é na problemática central do
livro, para além das novidades empíricas,
que reside a inovação maior, unindo passado e presente, mesclando culturas e
imaginários disparatados quanto à origem, formas de cognição e temporalidade. Decodificando "zonas estranhas", para usar a expressão do Lars von Trier, diretor do filme "Europa", várias vezes citado pelo historiador francês.
A questão central do autor é, quando
menos, demonstrar a enorme anterioridade disso que hoje se chama de globalização da cultura, sugerindo tratar-se de
um processo deslanchado a partir da virada do século 15 para o 16, tempo de
conquistas e de expansão planetária européia. O problema de fundo é porém
mais sofisticado, com o autor pondo em
xeque a corriqueira oposição entre mestiçagens e identidades e sugerindo que a
construção histórica das últimas passa,
na Europa, como noutras partes do mundo, particularmente na América Latina,
por mesclas culturais extremamente
complexas.
De todo modo, Gruzinski, sem recuar
diante dos desafios teóricos que provoca,
expõe com clareza a própria ambivalência do termo "mestiçagem", noção flutuante entre o biológico e o cultural: "O
nascimento e a multiplicação de indivíduos mestiços é um fato; o desenvolvimento de formas de vida misturadas,
procedendo de fontes múltiplas, é outro,
não necessariamente ligado ao anterior".
Na primeira parte do livro, Gruzinski
desenvolve amplamente o conceito de
mestiçagem cultural, entendendo-o no
sentido o mais amplo possível, do econômico ao imaginário, das técnicas às religiosidades. Transita, na demonstração,
por espaços e tempos variados, do México quinhentista à Alemanha pós-45, da
minúscula Algodoal, na Amazônia brasileira, à Berlim contemporânea.
Uniformização artificiosa
Mas seu pressuposto para estudar as
mestiçagens reside, paradoxalmente, na
desconfiança do próprio conceito de cultura e, no limite, na sua desconstrução. É
o que faz o autor ao criticar a uniformização artificiosa dos historiadores quando
explicam a conquista do México, por
exemplo, como um conflito cultural entre espanhóis e astecas. Afinal, os ditos
"espanhóis" eram, antes de tudo, andaluzes, castelhanos, aragoneses, bascos, assim como eram múltiplos e diversos os
povos do México central à época. De resto, o que prevalece nesta parte, a retomada, com novos dados, das pesquisas de
Gruzinski sobre o México colonial, o
ponto alto residindo na análise da criação
de uma identidade mestiça por meio do
processo de ocidentalização.
Na segunda parte, a chave da mescla
cultural é retomada por meio de fontes
iconográficas, empenhando-se o autor
em decifrar o que muitos chamaram de
"desordem de estilos" no México colonial. Despontam análises minuciosas e
originais, como a do macaco e da centaura nos frisos da Casa del Deán, em Puebla,
verdadeira hermenêutica dos símbolos
que conjugam o antigo imaginário do
México à arte do Renascimento italiano.
A terceira parte prossegue na mesma linha, buscando demonstrar a originalidade do pensamento ocidental, genuinamente mestiço, se é que cabe o advérbio,
gerado nos dois lados do Atlântico desde
o século 16. É tese original que procura
desvincular a frequente relação que se faz
entre globalização cultural e neoliberalismo e, de quebra, investe contra a idéia de
que a ocidentalização foi disruptiva.
"A ocidentalização", diz Gruzinski,
"não foi apenas uma irrupção destrutiva
ou um empreendimento normalizador,
já que participou da criação de formas
mestiças de expressão". O mesmo valeria
mais amplamente para a colonização ibérica, que para o autor foi "uma negociação ininterrupta, uma sequência de compromissos com a realidade indígena".
O novo livro de Gruzinski é obra de fôlego e de enorme ousadia intelectual.
Comparável, pela originalidade das interpretações e investidas contra clichês, aos
grandes ensaios sobre a formação cultural ibero-americana, a exemplo do que
fez Richard Morse em "O Espelho do
Próspero", no caso contrastando a colonização ibérica com a da América anglo-saxônica. Em termos metodológicos, "O
Pensamento Mestiço" também lembra
muito certos percursos do italiano Carlo
Ginzburg, o da "História Noturna", por
exemplo. Em ambos vê-se a minuciosa
decifração de símbolos inscritos em imaginários muito distantes no tempo e no
espaço do mesmo modo que a busca incessante dos hibridismos culturais, numa
clara conjugação da história com certas
abordagens antropológicas. E não deixa
de se aproximar do nosso Gilberto Freyre, ainda que por vias tortuosas, pois
Gruzinski celebra, como ele, a mestiçagem e seus resultados.
Mas é preciso dizer que "O Pensamento
Mestiço" é livro de difícil leitura, obra
destinada a iniciados, para dizer o mínimo. Leitores versados não apenas na história ibero-americana como na arte ocidental, história contemporânea e muitas
outras disciplinas ou conhecimentos que
o autor exibe à farta. Sobressaem comparações inusitadas, por vezes chocantes,
como a do México destroçado por Cortez, em 1521, e a Alemanha após a queda
de Hitler, em 1945, bem como constantes
referências a filmes, a sequências de alguns roteiros, a exemplo do "Europa" de
Von Trier, de "O Livro de Cabeceira", de
Peter Greenaway, da filmografia de
Wong Kar-wai, cineasta de Hong Kong
que dirigiu "Happy Togheter" (1997).
De maneira que o leitor é levado, às vezes forçado, a acompanhar enredos díspares e fragmentados, ora a arte dos tlacuillos, os pintores mexicanos de Ixmiquilpan, ora os dois chineses que tentam
sobreviver em Buenos Aires, como no filme de Wong Kar-wai. Enredos históricos
que se misturam a enredos fictícios, além
de uma pletora de informações que talvez
peque pelo excesso e aposte na fragmentação como técnica de narrativa.
No entanto, longe de sinalizar uma exposição caótica, tudo parece obedecer a
um plano preconcebido, empenhado em
demonstrar as mestiçagens e as formações compósitas não só por meio da discussão conceitual ou da "exempla" mas
da própria narrativa fragmentária e hibridizante, como num filme de Greenaway. Goste-se ou não dessa narrativa deliberadamente grotesca -um grotesco
ornamental-, Gruzinski cumpre o que
já na epígrafe promete ao leitor, e não à
toa a retoma como última frase do livro.
No caso, um verso de Mário de Andrade
que funciona como resumo da ópera:
"Sou um tupi tangendo um alaúde".
Ronaldo Vainfas é professor de história moderna
da Universidade Federal Fluminense.
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