São Paulo, sábado, 08 de junho de 2002

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A Ilustração brasileira

Agricultura Ilustrada - Liberalismo e Escravismo nas Origens da Questão Agrária Brasileira
Fernando Antonio Lourenço
Ed. da Unicamp (Tel. 0/xx/19/3788-7783)
223 págs., R$ 25,00

LEONILDE MEDEIROS

Fernando Lourenço propõe-se analisar o que considera a configuração ideológica que está nas raízes da questão agrária brasileira: a discriminação contra os pobres e a discriminação racial. Refletindo a partir de vasta documentação produzida no século 19, durante o livro o autor se vê instigado por questões contemporâneas, em especial pelo fato de que a modernização da agricultura no Brasil não trouxe consigo a "desbarbarização do campo".
Revisitando o tema da contradição entre os ideais iluministas da Revolução Francesa e a questão dos direitos do homem, retomando a tese de que a ação e o pensamento contra-revolucionários na Europa voltaram-se principalmente contra os princípios da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão ao mesmo tempo em que legaram contundentes críticas às mazelas da civilização industrial, Lourenço mostra como as diferentes aclimatações das idéias modernas no Brasil foram profundamente marcadas pela discriminação e preconceito social e racial, fazendo-se acompanhar de uma "tácita e difusa mentalidade antidemocrática".
Para tanto, o estudo apresenta uma análise acurada de fragmentos de textos de alguns pensadores do século 19, ainda pouco explorados em nossa literatura acadêmica, trazendo à luz as complexas relações entre proposições que visavam a modernização da agricultura e sua relação com as concepções sobre o trabalho rural. Uma das principais bases documentais são as publicações e posicionamentos da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, criada em 1827.
Essa instituição, que tinha entre seus membros importantes políticos do império, foi um espaço de elaboração e debate de projetos e diretrizes voltados para reformar a agricultura e organizar a nação emergente sob novos princípios. Embora sem efeitos políticos mais imediatos e espetaculares, ela se configurou em "importante instância de reprodução e legitimação da unidade ideológica da burocracia imperial" e difusora das novas idéias.
Recuperando discursos de vários matizes, mediante essas e outras fontes são apresentadas as proposições da chamada "Ilustração brasileira", movimento intelectual que se atribuía a missão de difundir as tecnologias modernas (novas culturas, técnicas de manejo, arados) e estimular a criação de instituições que superassem o que já então era diagnosticado como "atraso da agricultura". Assim fazendo, seus próceres refletiam sobre o lugar do trabalho e dos trabalhadores na sociedade, trazendo à tona o receio de uma lavoura dependente da mão-de-obra africana, capaz de "contaminar moralmente" a nação. Se o pensamento ilustrado era crítico do escravismo, não só acusando-o de aumentar os custos de produção como também de reforçar a indolência e a desvalorização do trabalho, também fazia a defesa da prerrogativa de poder dispor do direito de vida ou de morte sobre os subalternos.
Esse tipo de argumento, como demonstra o autor, aparece até mesmo nas formulações daqueles que eram favoráveis à libertação gradual dos escravos. Sob essa ótica, a mecanização agrícola teria uma dupla função: aumentar a produtividade mas também substituir a mão-de-obra escrava usada na lavoura. Estavam subjacentes a admiração pelo pensamento iluminista e, ao mesmo tempo, o temor de que, se levado às últimas consequências, ele viesse a provocar uma africanização do Brasil. Para se contrapor a essa possibilidade, defendia-se o estímulo à imigração de trabalhadores europeus, à institucionalização do ensino agrícola bem como propostas de implantar, na África, colônias onde os libertos pudessem receber instrução civil e religiosa.
Propostas de abolição da escravidão eram acompanhadas de sugestões de rígido controle social sobre os novos libertos, que envolviam a obrigatoriedade ao trabalho, a punição dos vadios com trabalho nos estabelecimentos disciplinares, o que leva o autor a concluir que a posição dos liberais reformistas, adeptos de uma estratégia de emancipação gradual dos escravos, foi acompanhada por uma persistente discriminação contra os negros.
Uma matriz comum, a "bárbara discriminação entre as criaturas humanas", está, pois, presente nas diferentes vertentes do liberalismo brasileiro, a escravista e a anti-escravista. Sob essa ótica, o desprezo social pelos pobres de toda espécie, a "populaça", é uma invariante nas várias manifestações do pensamento social da camada dirigente. Dessa forma, a aclimatação das idéias liberais no Brasil renovou as justificativas para a privação dos direitos da "populaça", considerada como um requisito necessário ao progresso do império. Na esteira dessas idéias são discutidos os riscos da concessão de participação e representação política para esses segmentos.
Ao longo do texto, com muita propriedade, a autor identifica, concomitante à construção do Brasil enquanto nação, um estilo de crescimento que combinou as vantagens do arcaico com as do moderno, resultando numa questão social de múltiplas dimensões como é a questão agrária brasileira: a "permanência do intolerável", a profunda desigualdade social.
"Agricultura Ilustrada" traz importante contribuições para o entendimento da antiguidade e permanência no tempo de alguns dos dilemas centrais de nossa sociedade: o tema dos direitos sociais e políticos. Esses dilemas se atualizam a cada momento de nossa história devido à profunda dificuldade das elites dominantes (mesmo quando ilustradas) em aceitar as reivindicações dos trabalhadores, sua capacidade de se organizar e mobilizar. A violência que persiste contra os trabalhadores rurais na sociedade brasileira, as cenas de humilhação pública, a desqualificação das suas demandas são indicadores de que as questões persistem e ainda estruturam muito de nossa sociabilidade e convivência política.


Leonilde Servolo de Medeiros é socióloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.



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