São Paulo, sábado, 08 de junho de 2002

Texto Anterior | Índice

Homens de Minas

Um momento decisivo de nossa história educacional e intelectual

A Escola de Minas de Ouro Preto - O Peso da Glória
José Murilo de Carvalho
Ed. UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4642)
226 págs., R$ 25,00

SERGIO MICELI

No intento de conhecer e explorar as riquezas minerais do país, d. Pedro 2º contratou o geólogo e mineralogista francês Claude Henri Gorceix para organizar o ensino dessas especialidades num estabelecimento modelo que ele fora incumbido de criar, a famosa Escola de Minas de Ouro Preto. Tendo-se formado na mesma Escola Normal Superior de Paris, na qual exercia funções docentes, por mais que se louvem os méritos de sua competência, soam um bocado exagerados os qualificativos com que seus apologistas, quase todos ex-alunos ou auxiliares, o caracterizam ao tempo de sua chegada ao país. O fato de ter apenas 31 anos de idade e pouca experiência científica não lhe permitiriam ser "um completo químico e mineralogista e um consumado geólogo", no máximo um "colaborador da mais adiantada ciência de seu tempo".
O estudo empreendido por José Murilo de Carvalho, publicado a primeira vez em 1980, pretendia realizar uma história institucional, modelo de interpretação talvez adotado por conta do feitio aplicado então que prevalecia no programa de estudos em ciência e tecnologia da agência federal financiadora (Finep). O levantamento criterioso de fontes, a ordenação meticulosa dos dados, a montagem da trama histórica, a habilidade em lidar com vozes e registros heterogêneos, a nitidez no alinhavo do texto foram os méritos que fizeram desse trabalho um título de referência obrigatória. Tal encomenda foi levada a cabo com tamanho acerto e inteligência que acaba suscitando no leitor de hoje outros possíveis arranjos das evidências acionadas pela argumentação. E muito do que vou dizer está em sintonia com o tipo de história social que o próprio autor tem praticado em estudos recentes.

Dissensões interpretativas
A primeira delas tem a ver com a natureza das motivações que teriam impulsionado a iniciativa imperial. O autor aposta nos indicadores de inexistência de uma demanda social ou econômica por geólogos ou engenheiros de minas na economia exportadora e escravocrata de 1876, primeiro ano de funcionamento da Escola de Minas. Ainda que se possam aceitar seus juízos acerca das condições de isolamento em que teria ocorrido o desaparecimento da geração ilustrada, os rastos de suas apreensões quanto ao rendimento dos recursos minerais no país encontraram outros meios de germinar. Dito de outro modo, não se pode descartar o legado das preocupações pombalinas concernentes às riquezas da colônia brasileira como uma das motivações subjacentes à vontade política imperial. O autor esquadrinha a questão e prefere esvaziá-la de carga explicativa.
Por outro lado, à luz dos notáveis resultados logrados no tocante à formação e conversão de uma parcela ponderável de ex-alunos em quadros arrojados de uma elite de engenheiros, tecnocratas e empresários em plena atividade desde a segunda década da Primeira República, quem sabe agora o autor talvez enveredasse por trilhas adicionais no garimpo de dados.
Assim, em lugar de se ater aos marcos estritos de uma história institucional, movida pelas circunstâncias cambiantes em que operavam os protagonistas e círculos diretamente envolvidos -Gorceix, Pedro 2º, ministros e políticos imperiais, autoridades do governo provincial-, decerto haveria ganhos em indagar como foi possível, num lapso tão curto de tempo, converter uma Escola periclitante -num primeiro momento desprovida de candidatos e de apoios importantes nos grupos dirigentes, até ameaçada de fechar as portas- numa instância estratégica de treinamento de uma fração emergente da elite regional, apta a assumir os desafios técnicos e gerenciais que dariam feição própria e novos rumos à economia mineira.
A abordagem institucional supõe a crença na possibilidade de pensar a importação de modelos de ensino e pensamento, de saberes e idéias, de competência intelectual, como se fosse matéria compreensível adstrita às suas balizas legais e políticas, sem levar em conta as demandas postas pelos usuários preferenciais do empreendimento. Tudo se passa como se a Escola de Minas tivesse a missão de produzir quadros competentes, e pouco se cogita de deslindar os meios pelos quais a clientela buscou modelar o ensino conforme suas conveniências.
Mesmo que se possa caracterizar a criação da Escola de Minas como um ato de voluntarismo político, como se o imperador tivesse feito das minas coração, o fato de esse treinamento tecnocientífico, sofisticado para os padrões vigentes na época, ter encontrado acolhida em certas famílias da elite logo passou a infundir no empreendimento um indisfarçável tônus de exclusivismo social. Portanto a façanha interpretativa consistiria em compatibilizar o desígnio político imperial à paulatina emergência de uma entidade especializada no preparo de um novo tipo de elite ilustrada, fazendo convergir modos de apreensão complementares.

Cultura e prática política
Tendo sido concebida em termos de uma política compensatória, em favor de um Estado importante, que fora preterido por ocasião da abertura dos cursos jurídicos em 1827, a Escola de Minas tornou ainda mais arraigado esse ímpeto defensivo de interesses por parte da elite estadual, por vezes adotando alguma máscara de "mineiridade". Tal tendência se manifestou de início por força dos riscos de esvaziamento institucional sinalizados pela transferência da capital estadual de Ouro Preto para Belo Horizonte, em 1897, tendo-se reforçado ao longo da Primeira República e em especial após 1930, quando se completa o declínio do peso de Minas no sistema nacional de poder.
Por conseguinte, cumpre enxergar a história do estabelecimento em função de negociações que vão lhe dando um rosto institucional, uma chancela política, uma marca intelectual, uma tradição científica, um selo de qualidade técnica, um carimbo ideológico, um jeito de clube, um ar de família. O impacto exercido por essa sementeira de vocações de mando dependeu de escaramuças em todas essas frentes de combate. No entanto, o estudo em apreço dá mais conta dos arreglos entre atores e grupamentos políticos, em detrimento da minguada atenção conferida às transações sociais de caráter mais estrutural no interior da classe dirigente.
Por exemplo, a decisão do governo estadual de condicionar a oferta regular de apoio financeiro, desde 1885, à introdução de um curso de engenharia civil evidencia quanto já se haviam sedimentado as funções cumpridas no que diz respeito ao trabalho de reprodução educacional e estamental do segmento ilustrado da elite estadual. Entre 1878 e 1912, a proporção de mineiros, entre os engenheiros formados pela Escola de Minas, se eleva de 50% para 80% dos graduados, mantendo-se nesse piso até 1920 e recuando para 72% no período 1921-1931. Tal subvenção era a senha de um comprometimento, que foi se traduzindo num conjunto de alianças em diversas frentes de sociabilidade: apoio político para acesso a cargos públicos de confiança; opção preferencial de curso superior; cooptação para o corpo docente; a solda garantida pelas alianças matrimoniais e parcerias de negócios.
Aliás, algumas informações esparsas oferecem pistas preciosas no tocante aos padrões adotados por aquelas famílias de elite que passaram a incluir a passagem pela Escola de Minas como experiência integrada aos dispositivos de reprodução social ao seu alcance, fazendo as vezes de lastro e lustro de suas ambições. O próprio Gorceix e dois de seus auxiliares próximos, o professor francês Paul Ferrand e o aluno não-mineiro João Pandiá Calógeras, futuro ministro nas pastas da Agricultura, Fazenda e Guerra na República Velha, se casaram com filhas do desembargador Joaquim Caetano da Silva Guimarães, irmão do romancista Bernardo Guimarães e avô de Djalma Guimarães, exemplo brilhante do numeroso grupo de dirigentes dos órgãos governamentais de política mineral que havia estudado na Escola.
Todas as evidências mencionadas acima constam do trabalho, ora sendo interpretadas por lentes politicistas de boa cepa, como no caso do acordo firmado entre o governo estadual e a direção da Escola, ora sendo alocadas em notas de rodapé, quase a título de curiosidade, como, por exemplo, a nomeação das dinastias familiares envolvidas com a Escola por sucessivas gerações ou a notícia dos casamentos de seus fundadores. Nessa perspectiva, o exame do que se passou na Escola de Minas proporciona um ângulo privilegiado para entender mediações e liames por meio dos quais a atividade cultural é a modalidade mais sorrateira de fazer política, ou melhor, de como educação e cultura são domínios de práticas difíceis de assuntar.

Elite torneada na escola
Tratando-se de uma escola masculina voltada exclusivamente para a formação de uma minoria seleta de estudantes altamente qualificados -turmas de graduados que nunca ultrapassaram o teto de dez alunos entre 1878 e 1917-, a Escola de Minas firmou um padrão reconhecível de exigências quanto aos requisitos necessários em matéria de capital social e cultural. A Escola passou a conferir um título acadêmico que habilitava seus portadores a utilizá-lo de pronto em credencial de acesso a posições prestigiosas de mando em instâncias políticas e técnicas, nos planos estadual e federal, ou então, como detentores monopolistas de competência técnica em projetos de investimento na área industrial de siderurgia e mineração.
A lista dos graduados inclui um número considerável dos chamados "homens de Minas", líderes de um dos setores mais bem-sucedidos do empresariado do Estado, para lembrar o título de um livro-manifesto em homenagem ao governador João Pinheiro. O autor dessa obra era o empresário Pedro Rache, irmão de outro capitão de indústria, ambos ex-alunos, aliado de Percival Farquhar nas lutas em torno da Itabira Iron nos anos 30, e adiante na criação da Acesita (1944), responsável pelo relatório final sobre siderurgia submetido ao Conselho Técnico de Economia e Finanças, em pleno Estado Novo.
A terceira parte do livro, relativa às razões responsáveis pelo declínio institucional, motivado por crises de todo o tipo -conflitos de jurisdição, greves, movimentos de renovação etc.-, teria merecido uma boa mexida, sendo o único trecho de leitura enfadonha. Apesar de se basear em documentação primária (atas da Congregação, projetos e pareceres etc.), em depoimentos prestados por professores e alunos, o leitor fica desorientado diante da profusão de subtítulos que buscam ordenar o choque de opiniões e tomadas de posição assumidas pelos vários grupos de interesses atuantes no âmbito da instituição.
Por força de sua alta qualidade intelectual e pela narrativa enxuta, o estudo de caso sobre a Escola de Minas se tornou monografia de leitura indispensável, prestando-se, pois, ao confronto entre formatos alternativos de explicação. Esse trabalho primoroso continua servindo tanto para esclarecer um episódio-chave de nossa história educacional e intelectual, quanto para situar opções contrastantes de interpretação dos materiais de que se alimenta essa intrincada e exclusivista história social de redes, panelas, acertos e privilégios de toda ordem, em torno dos quais se constituiu a injusta sociedade brasileira.


Sergio Miceli é professor titular de sociologia na USP, autor, entre outros livros, de "Intelectuais à Brasileira" (Cia.das Letras) e atualmente fellow no Center for Advanced Study in the Behavioral Sciences, Universidade Stanford (EUA).



Texto Anterior: Uma visão da vida
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.