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Homens de Minas
Um momento decisivo de nossa história educacional e intelectual
A Escola de Minas de Ouro
Preto - O Peso da Glória
José Murilo de Carvalho
Ed. UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4642)
226 págs., R$ 25,00
SERGIO MICELI
No intento de conhecer e explorar as riquezas minerais do país, d. Pedro 2º contratou o geólogo e mineralogista francês
Claude Henri Gorceix para organizar o
ensino dessas especialidades num estabelecimento modelo que ele fora incumbido de criar, a famosa Escola de Minas de
Ouro Preto. Tendo-se formado na mesma Escola Normal Superior de Paris, na
qual exercia funções docentes, por mais
que se louvem os méritos de sua competência, soam um bocado exagerados os
qualificativos com que seus apologistas,
quase todos ex-alunos ou auxiliares, o caracterizam ao tempo de sua chegada ao
país. O fato de ter apenas 31 anos de idade
e pouca experiência científica não lhe
permitiriam ser "um completo químico e
mineralogista e um consumado geólogo", no máximo um "colaborador da
mais adiantada ciência de seu tempo".
O estudo empreendido por José Murilo
de Carvalho, publicado a primeira vez em
1980, pretendia realizar uma história institucional, modelo de interpretação talvez adotado por conta do feitio aplicado
então que prevalecia no programa de estudos em ciência e tecnologia da agência
federal financiadora (Finep). O levantamento criterioso de fontes, a ordenação
meticulosa dos dados, a montagem da
trama histórica, a habilidade em lidar
com vozes e registros heterogêneos, a nitidez no alinhavo do texto foram os méritos que fizeram desse trabalho um título
de referência obrigatória. Tal encomenda
foi levada a cabo com tamanho acerto e
inteligência que acaba suscitando no leitor de hoje outros possíveis arranjos das
evidências acionadas pela argumentação.
E muito do que vou dizer está em sintonia com o tipo de história social que o
próprio autor tem praticado em estudos
recentes.
Dissensões interpretativas
A primeira delas tem a ver com a natureza das motivações que teriam impulsionado a iniciativa imperial. O autor
aposta nos indicadores de inexistência de
uma demanda social ou econômica por
geólogos ou engenheiros de minas na
economia exportadora e escravocrata de
1876, primeiro ano de funcionamento da
Escola de Minas. Ainda que se possam
aceitar seus juízos acerca das condições
de isolamento em que teria ocorrido o
desaparecimento da geração ilustrada, os
rastos de suas apreensões quanto ao rendimento dos recursos minerais no país
encontraram outros meios de germinar.
Dito de outro modo, não se pode descartar o legado das preocupações pombalinas concernentes às riquezas da colônia
brasileira como uma das motivações subjacentes à vontade política imperial. O
autor esquadrinha a questão e prefere esvaziá-la de carga explicativa.
Por outro lado, à luz dos notáveis resultados logrados no tocante à formação e
conversão de uma parcela ponderável de
ex-alunos em quadros arrojados de uma
elite de engenheiros, tecnocratas e empresários em plena atividade desde a segunda década da Primeira República,
quem sabe agora o autor talvez enveredasse por trilhas adicionais no garimpo
de dados.
Assim, em lugar de se ater aos marcos
estritos de uma história institucional,
movida pelas circunstâncias cambiantes
em que operavam os protagonistas e círculos diretamente envolvidos -Gorceix,
Pedro 2º, ministros e políticos imperiais,
autoridades do governo provincial-,
decerto haveria ganhos em indagar como
foi possível, num lapso tão curto de tempo, converter uma Escola periclitante
-num primeiro momento desprovida
de candidatos e de apoios importantes
nos grupos dirigentes, até ameaçada de
fechar as portas- numa instância estratégica de treinamento de uma fração
emergente da elite regional, apta a assumir os desafios técnicos e gerenciais que
dariam feição própria e novos rumos à
economia mineira.
A abordagem institucional supõe a
crença na possibilidade de pensar a importação de modelos de ensino e pensamento, de saberes e idéias, de competência intelectual, como se fosse matéria
compreensível adstrita às suas balizas legais e políticas, sem levar em conta as demandas postas pelos usuários preferenciais do empreendimento. Tudo se passa
como se a Escola de Minas tivesse a missão de produzir quadros competentes, e
pouco se cogita de deslindar os meios pelos quais a clientela buscou modelar o ensino conforme suas conveniências.
Mesmo que se possa caracterizar a criação da Escola de Minas como um ato de
voluntarismo político, como se o imperador tivesse feito das minas coração, o fato
de esse treinamento tecnocientífico, sofisticado para os padrões vigentes na época, ter encontrado acolhida em certas famílias da elite logo passou a infundir no
empreendimento um indisfarçável tônus
de exclusivismo social. Portanto a façanha interpretativa consistiria em compatibilizar o desígnio político imperial à
paulatina emergência de uma entidade
especializada no preparo de um novo tipo de elite ilustrada, fazendo convergir
modos de apreensão complementares.
Cultura e prática política
Tendo sido concebida em termos de
uma política compensatória, em favor de
um Estado importante, que fora preterido por ocasião da abertura dos cursos jurídicos em 1827, a Escola de Minas tornou ainda mais arraigado esse ímpeto defensivo de interesses por parte da elite estadual, por vezes adotando alguma máscara de "mineiridade". Tal tendência se
manifestou de início por força dos riscos
de esvaziamento institucional sinalizados
pela transferência da capital estadual de
Ouro Preto para Belo Horizonte, em
1897, tendo-se reforçado ao longo da Primeira República e em especial após 1930,
quando se completa o declínio do peso de
Minas no sistema nacional de poder.
Por conseguinte, cumpre enxergar a
história do estabelecimento em função
de negociações que vão lhe dando um
rosto institucional, uma chancela política, uma marca intelectual, uma tradição
científica, um selo de qualidade técnica,
um carimbo ideológico, um jeito de clube, um ar de família. O impacto exercido
por essa sementeira de vocações de mando dependeu de escaramuças em todas
essas frentes de combate. No entanto, o
estudo em apreço dá mais conta dos arreglos entre atores e grupamentos políticos,
em detrimento da minguada atenção
conferida às transações sociais de caráter
mais estrutural no interior da classe dirigente.
Por exemplo, a decisão do governo estadual de condicionar a oferta regular de
apoio financeiro, desde 1885, à introdução de um curso de engenharia civil evidencia quanto já se haviam sedimentado
as funções cumpridas no que diz respeito
ao trabalho de reprodução educacional e
estamental do segmento ilustrado da elite
estadual. Entre 1878 e 1912, a proporção
de mineiros, entre os engenheiros formados pela Escola de Minas, se eleva de 50%
para 80% dos graduados, mantendo-se
nesse piso até 1920 e recuando para 72%
no período 1921-1931. Tal subvenção era
a senha de um comprometimento, que
foi se traduzindo num conjunto de alianças em diversas frentes de sociabilidade:
apoio político para acesso a cargos públicos de confiança; opção preferencial de
curso superior; cooptação para o corpo
docente; a solda garantida pelas alianças
matrimoniais e parcerias de negócios.
Aliás, algumas informações esparsas
oferecem pistas preciosas no tocante aos
padrões adotados por aquelas famílias de
elite que passaram a incluir a passagem
pela Escola de Minas como experiência
integrada aos dispositivos de reprodução
social ao seu alcance, fazendo as vezes de
lastro e lustro de suas ambições. O próprio Gorceix e dois de seus auxiliares próximos, o professor francês Paul Ferrand e
o aluno não-mineiro João Pandiá Calógeras, futuro ministro nas pastas da Agricultura, Fazenda e Guerra na República
Velha, se casaram com filhas do desembargador Joaquim Caetano da Silva Guimarães, irmão do romancista Bernardo
Guimarães e avô de Djalma Guimarães,
exemplo brilhante do numeroso grupo
de dirigentes dos órgãos governamentais
de política mineral que havia estudado na
Escola.
Todas as evidências mencionadas acima constam do trabalho, ora sendo interpretadas por lentes politicistas de boa cepa, como no caso do acordo firmado entre o governo estadual e a direção da Escola, ora sendo alocadas em notas de rodapé, quase a título de curiosidade, como, por exemplo, a nomeação das dinastias familiares envolvidas com a Escola
por sucessivas gerações ou a notícia dos
casamentos de seus fundadores. Nessa
perspectiva, o exame do que se passou na
Escola de Minas proporciona um ângulo
privilegiado para entender mediações e
liames por meio dos quais a atividade
cultural é a modalidade mais sorrateira
de fazer política, ou melhor, de como
educação e cultura são domínios de práticas difíceis de assuntar.
Elite torneada na escola
Tratando-se de uma escola masculina
voltada exclusivamente para a formação
de uma minoria seleta de estudantes altamente qualificados -turmas de graduados que nunca ultrapassaram o teto de
dez alunos entre 1878 e 1917-, a Escola
de Minas firmou um padrão reconhecível
de exigências quanto aos requisitos necessários em matéria de capital social e
cultural. A Escola passou a conferir um título acadêmico que habilitava seus portadores a utilizá-lo de pronto em credencial
de acesso a posições prestigiosas de mando em instâncias políticas e técnicas, nos
planos estadual e federal, ou então, como
detentores monopolistas de competência
técnica em projetos de investimento na
área industrial de siderurgia e mineração.
A lista dos graduados inclui um número considerável dos chamados "homens
de Minas", líderes de um dos setores mais
bem-sucedidos do empresariado do Estado, para lembrar o título de um livro-manifesto em homenagem ao governador João Pinheiro. O autor dessa obra era
o empresário Pedro Rache, irmão de outro capitão de indústria, ambos ex-alunos, aliado de Percival Farquhar nas lutas
em torno da Itabira Iron nos anos 30, e
adiante na criação da Acesita (1944), responsável pelo relatório final sobre siderurgia submetido ao Conselho Técnico
de Economia e Finanças, em pleno Estado Novo.
A terceira parte do livro, relativa às razões responsáveis pelo declínio institucional, motivado por crises de todo o tipo
-conflitos de jurisdição, greves, movimentos de renovação etc.-, teria merecido uma boa mexida, sendo o único trecho de leitura enfadonha. Apesar de se
basear em documentação primária (atas
da Congregação, projetos e pareceres
etc.), em depoimentos prestados por professores e alunos, o leitor fica desorientado diante da profusão de subtítulos que
buscam ordenar o choque de opiniões e
tomadas de posição assumidas pelos vários grupos de interesses atuantes no âmbito da instituição.
Por força de sua alta qualidade intelectual e pela narrativa enxuta, o estudo de
caso sobre a Escola de Minas se tornou
monografia de leitura indispensável,
prestando-se, pois, ao confronto entre
formatos alternativos de explicação. Esse
trabalho primoroso continua servindo
tanto para esclarecer um episódio-chave
de nossa história educacional e intelectual, quanto para situar opções contrastantes de interpretação dos materiais de
que se alimenta essa intrincada e exclusivista história social de redes, panelas,
acertos e privilégios de toda ordem, em
torno dos quais se constituiu a injusta sociedade brasileira.
Sergio Miceli é professor titular de sociologia na
USP, autor, entre outros livros, de "Intelectuais à
Brasileira" (Cia.das Letras) e atualmente fellow no
Center for Advanced Study in the Behavioral
Sciences, Universidade Stanford (EUA).
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