São Paulo, sábado, 08 de junho de 2002

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Uma visão da vida

A idéia de evolução de Platão a Darwin

Lance de Dados
Stephen Jay Gould
Tradução: Sergio Moraes Rego
Record (Tel. 0/xx/21/2585-2000)
332 págs., R$ 40,00

NELIO BIZZO

Uma coisa muito comum, especialmente durante a juventude, é cultivarmos uma admiração extraordinária por certas pessoas. Pouco comum, no entanto, é conseguir, depois de grande, dar continuidade ao trabalho de nossos heróis e passar a ser admirado por multidões. Stephen Jay Gould, morto no dia 20 de maio passado, foi uma dessas pessoas pouco comuns.
Seu maior herói foi, na verdade, seu primeiro incentivador. Aos cinco anos de idade, logo após o término da Segunda Guerra, o pequeno Stephen viu diante de si a reconstituição de um tremendo "Tyrannosaurus". Naquele momento começava a se formar um biólogo, que granjearia fama e seria eternamente grato a seu pai pelo passeio vocacional. O estenógrafo de profissão jamais poderia imaginar que seu filho sairia pelas avessas. Acostumado a escrever coisas simples de uma maneira rápida que poucos podiam entender, veria o filho granjear fama gastando tempo a escrever coisas difíceis de maneira que muitos podiam compreender. Além de paleontologia, o filho escreveria sobre história da ciência e chegaria até a reescrever trechos inteiros das teorias de seu terceiro herói.
Do segundo deles, Gould guardava muitas lembranças. A maior delas era uma bola de beisebol, espetacularmente rebatida pelo ágil Di Maggio, que acabou caindo em suas mãos. Atleta muito popular na década de 50, a alegria que as jogadas de Di Maggio proporcionaram ao pequeno torcedor só não foi maior que seu futuro sucesso como cientista.
Charles Robert Darwin, seu terceiro herói, não poderia ter esperado melhor defensor em nossos dias. Em sua coluna mensal na revista "Natural History", entre 1974 e 2001, abordou os mais variados temas, tendo como cenário invariante o panorama evolutivo. Muitos desses ensaios curtos, escritos em linguagem simples, estimulante e bem-humorada, foram reunidos e publicados na forma de livros, em que ele explica como é possível entender a evolução biológica a partir das idéias luminares de Darwin.
O grande respeito que Gould granjeou na comunidade científica adveio de sua ousadia científica. Ele e seu colega Niles Eldredge tinham lançado uma nova forma de entender as descontinuidades do registro fóssil logo no início da década de 1970, poucos anos depois de ter ingressado como professor na prestigiosa Universidade Harvard. Os darwinistas ortodoxos acreditam que as mudanças evolutivas que deram origem aos grandes grupos de seres vivos (macroevolução) sejam apenas somatória das pequenas mudanças evolutivas do dia-a-dia das populações (microevolução). Gould foi uma das vozes destoantes do consenso geral de que "a natureza não faz saltos", provérbio preferido de seu terceiro herói.
Para compreender Gould é necessário levar em consideração o ambiente no qual esteve imerso. Nova-iorquino fanático assumido, ele viveu, de um lado, rodeado por uma imensa turba de fanáticos religiosos que insistem em negar todo o conhecimento acumulado sobre a evolução; e, por outro, ombreado por colegas darwinistas norte-americanos (dentre os quais destaca-se Edward Wilson) que enveredam por uma interpretação literal da doutrina biológica, procurando competição, adaptação e, principalmente, seleção natural em absolutamente tudo o que os rodeia, inclusive no campo do comportamento social humano. Dessa forma, acabam por revitalizar velhas versões de determinismo biológico -versões bandeirosamente ideológicas de darwinismo. É nesse campo minado que Gould ensaiava seus passos, atuando ora como incendiário, ora como bombeiro.

Importância da diversidade
Este seu mais recente livro entre nós é, de certa forma, uma deliciosa brincadeira, como quem acena para o público diante do portal da eternidade. Lá ele tratou de dois de seus heróis não-aparentados, recolocando até o beisebol no centro de formulações científicas da maior seriedade. Ele nos fala de alguém que tem uma mão cheia de boas cartas, uma amostragem significativa da diversidade de cartas do baralho, e aplica essa metáfora a diversos contextos nos quais é fácil esquecer a grande diversidade que se tem ao redor de um evento.
Ele nos conta como, em julho de 1982, aos 40 anos, teve que enfrentar o difícil diagnóstico de mesotelioma abdominal, uma forma de câncer rara e "invariavelmente fatal", citou entre aspas, reproduzindo os comunicados oficiais. Evitou tornar público seu drama pessoal e se recusou a escrever sobre ele, mesmo sabendo ser um imperativo moral retribuir as bênçãos especialmente quando isso pode reverter em benefício para outras pessoas. No entanto, seu testemunho pessoal provinha sobretudo da necessidade de satisfazer um impulso intelectual. Entendendo um pouco de estatística, é possível enfrentar mesmo diagnósticos difíceis sem se sentir terrivelmente abalado, como se diante de uma sentença de morte. Seu artigo começava com uma citação de Mark Twain (que alguns atribuem a Disraeli) sobre os três tipos de mentira: as mentiras, as grandes mentiras e as estatísticas.
Elas lhe tinham dito que a "mortalidade média" do paciente com mesotelioma é de oito meses, o que a maioria das pessoas entenderia como "aproveite a vida nos próximos sete meses". Ora, a "mortalidade média" era, na verdade, a mediana da sobrevida, ou seja, de todos os pacientes com mesotelioma (desde os que acabaram de receber o diagnóstico até os que o tinham recebido há 20 anos), a linha que dividia essa população ao meio cruzava a altura do oitavo mês. Portanto, dizer que aquela estatística era uma bomba-relógio armada para oito meses equivalia a uma besteira. Era possível posicionar-se na ponta da direita da curva e sobreviver muitos anos além dos oito meses, o que, aliás, foi o que aconteceu com Gould.
Imagine-se que apareça um novo método de diagnóstico, capaz de detectar o câncer em fase muito mais precoce. Certamente estaríamos diante de boas notícias, em especial se isso significasse maior chance de cura. No entanto, nesse caso, em apenas alguns meses, a mediana de sobrevida diminuiria, dado que haveria grande aumento do número de pacientes com pouco tempo de diagnóstico. Assim, inflacionada com o contingente de pacientes novatos, a linha que divide ao meio o grupo inteiro de pacientes tenderia a recuar, dando a falsa impressão de que as coisas tinham piorado.
Durante sua convalescença há quase 20 anos, Gould recolheu tantos registros quanto pôde sobre beisebol e as rebatidas. O leitor brasileiro terá certamente dificuldade em acompanhar o raciocínio de Gould quando ele demonstra matematicamente que as grandes médias de rebatida em seu esporte favorito não ocorrem mais hoje em dia porque o esporte melhorou e o desempenho dos atletas é mais homogêneo -e não, como diria o senso comum, que não se tem mais jogadores como antigamente.
Talvez uma comparação com o futebol ajude: por que Romário está longe dos mil gols? Por que nenhum atacante está próximo da marca histórica de Pelé? A primeira resposta talvez fosse que não se marcam mais tantos gols quanto antigamente. Na era Felipão, para dizer a verdade, essa é a sensação geral. Mas talvez se pudesse realizar um estudo com o nobre esporte bretão para responder a duas perguntas. Uma delas exploraria se o número de gols por partida diminuiu, comparando o período 1956-1969 com o período 1989-2002. A outra tentaria responder à seguinte questão: a distribuição de jogadores artilheiros aumentou, comparando os dois períodos? Talvez encontrássemos uma média de gols por partida parecida nos dois períodos (ou talvez maior hoje em dia), mas uma maior dispersão de gols entre os jogadores (hoje temos até goleiro cobrando falta com algum talento). Se assim fosse, repetiríamos a conclusão de Gould. Com mais jogadores bons, a tendência da artilharia é diminuir seus recordes e não o contrário. Tal qual no episódio do novo método de diagnóstico e a aparente sobrevida mais curta de pacientes, mais uma vez a lanterna de Gould nos levaria a uma compreensão inovadora sobre coisas que estão diante de nossos olhos e, mesmo assim, não as vemos.
As atenções de Gould se voltam, ao fim do livro, àqueles que entendem que evolução significa progresso e que essa idéia positivista inscrita em nosso pavilhão nacional seja sinônimo de complexidade. Gould explora com profundidade o tema, mostrando inclusive a genealogia da confusão, que remonta à época de Darwin.
O mundo sem Stephen Jay Gould será um pouco diferente. Ele morreu de um câncer secundário, aparentemente sem ligação direta com o mesotelioma que lhe tirou o sossego por um bom tempo. No entanto, seus escritos ficam e constituem um legado inestimável, tanto para o púbico leigo quanto para especialistas.


Nelio Bizzo é biólogo e professor da Faculdade de Educação da USP.



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