São Paulo, sábado, 09 de fevereiro de 2002

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Afinação e dissonância

Nova edição das "Obras Completas" de Álvares de Azevedo

ALCIDES VILLAÇA

Álvares de Azevedo - Obra Completa
Organização de Alexei Bueno
Nova Aguilar (Tel. 0/xx/21/2537-8275)
849 págs., R$ 90,00

A sobrevivência poética de Álvares de Azevedo deve-se, em boa parte, a certo mal-estar irônico que caracteriza essa poesia, expresso em chave de autocrítica. Muito leitor moderno pauta o gosto pelo valor que atribui, às vezes já de saída e como cláusula obrigatória, à expressão desse mal-estar irônico, a essa consciência manifesta dos limites da escritura. Tal mecânica de gosto pode encerrar-se nos limites estritos da linguagem que alude à linguagem, tornando-se assim espelho de um espelho. Os procedimentos verbais auto-referentes não são, contudo, auto-interpretativos nem valores em si, mas dependem do nosso retorno crítico e afetivo, que é quando se reconstitui ou não o sentido de seus movimentos.
Sobreviver como poeta lírico significa atender a novas chaves de um gosto testado no centro de uma nova compreensão e de uma nova experiência da subjetividade, sem prejuízo para os interesses de quem, num outro movimento, persiga a "compreensão de uma época". A obra de Álvares de Azevedo sincroniza-se conosco na vertente do "drama da criação", quando o embevecimento pela retórica marcada convive com o sentimento da desconfiança, quando a constituição da máscara mais convencional não elimina a possibilidade da máscara acusatória. Os dois famosos prefácios da "Lira dos Vinte Anos" foram desde sempre tidos como documentos da atilada consciência que o poeta revelou sobre essa "binomia".
A significação desse "binômio" não se paralisa, é óbvio, nos limites de uma antítese ou de um paradoxo, assim como a condição de adolescente e estudante desterrado, a timidez amorosa, o bom berço familiar e as leituras de Byron e Musset não são condicionantes explicativas, mas partes da questão. A questão, essencialmente lírica, de Álvares de Azevedo está em compor a expressão de sua identidade figurando-a também no embate com os limites objetivos de um poeta brasileiro, vale dizer: no espaço de um específico dilema cultural. Esse dilema alcançou uma tradução muito local na comparação entre o Rio de Janeiro e São Paulo: a "caipirada" paulistana faz o poeta amargar saudades da corte, a vila paulista de 20 mil habitantes parece-lhe infame e atrasada, provocando um tipo de "spleen" bastante particular, visível nas cartas à mãe e em passagens do "Macário". Mal aclimatado em taverna paulistana e na parceria com o poeta-estudante, Mefistófeles empresta ao nosso Fausto um ar singularmente patético, adicionando-se ao drama, aqui e ali, alguma parcela de humor involuntário. Nesse registro híbrido de tom solene e farsa adivinhada, há uma questão aguda de dependência cultural versus voluntarismo pessoal e nacionalista que Rubem Fonseca avaliaria magistralmente em forma ficcional: leia-se o conto "H.M.S. Cormorant em Paranaguá" e acompanhe-se o sugestivo diálogo imaginado entre Lord Byron, aqui desembarcado do navio inglês, e o nosso complexado Maneco.
O centro resistente da poesia de Azevedo representa-se em "Idéias Íntimas", "Spleen e Charutos" e em mais uma dúzia de poemas da "Lira". Está nesse núcleo o que não encontraremos com a mesma força em outros poetas românticos brasileiros: uma desconfiança aguda quanto aos dois gumes da faca em que toda idealização extrema se converte, ferindo ao mesmo tempo os limites sensíveis da vivência e o imaginário idealizado. Quando, por exemplo, a imagem etérea da bela adormecida pinta-se numa estampa na parede do quarto de estudante, encaixilhada nesse outro esquife de vidro, monta-se uma figuração muito intensa que funciona também como descrição material. Há, na recolha dos detalhes da situação empírica, dissonâncias em relação à "infinitude íntima", o que Antonio Candido reconheceu como "emprego da discordância e do contraste, como corretivo a uma concepção estática e homogênea da literatura".

Traduzir a dissonância
Sim, a lição parece vir de Musset, apontada em epígrafe, e a pose de maldito vem de Byron, mas a expressão de Azevedo é inteiramente convincente quanto ao foco do problema singularmente seu, que é o de traduzir a dissonância em sentido próprio. O estudante de direito, arrasado pelo provincianismo da "pátria dos Tibiriçás, Buenos e Bobadelas", mocinho vagamente aristocrático, com conhaque, charuto e pajem, anda pelo quarto perguntando por seus anseios, comovendo-se e rindo deles, autor, protagonista e vítima das idealizações, nas quais vibra o desejo indisfarçável.
Beijar o vidro poeirento que recobre a estampa da mulher desejada é estimar a mediação romântica no que ela tem de desejo de aproximação e desejo de distância, é acusar, no gesto materializante, uma espécie de substrato físico e autobiográfico dessa mediação. Grandes poemas de Manuel Bandeira alcançariam muito tempo depois, pelo talento extraordinário e com as novas chaves do tempo, uma naturalidade melancólica e serena na avaliação das experiências líricas.
Pergunto-me se também em relação ao tema da morte não se encontraria, no contexto da obra azevediana, um timbre mais particular. É certo que o temor/anseio pela morte faz figura de lugar-comum romântico em muitos poemas -mas a insistência do poeta em já se anunciar defunto, confessando, mal saído da adolescência, que "de tanta inspiração e tanta vida (...)/ resta um poeta morto" ("Cadáver de Poeta"), ganha, em seu contexto específico, o sentido de uma condenação da arte que não lhe pode fornecer um auto-retrato mais... realista.
Esse pretendido "realismo" se representa por vezes de modo original e surpreendente: no soneto "Pálida, à Luz da Lâmpada Sombria", ele está inteiro no olhar da bela que desperta em seu leito e flagra, rindo, o embevecimento do rapaz, "voyeur" embasbacado, desmascarado e já confuso. Não se trata de sátira, pela qual qualquer estilo ganha fôlego "realista"; trata-se de um drama que a lírica romântica encena vingando os limites de sua convenção. A suspeita de farsa, inclusa nesse drama, talvez espelhe um vago desconforto pela apropriação do estilo europeu, talvez reponte nessa poesia como nuance e discreta contribuição de um brasileiro ao repertório geral. A visão rebaixada que Macário tem de São Paulo coincide com a do Azevedo das cartas, o que não deixa de ser sugestivo.
Quanto às cartas do poeta, esta nova edição é mais generosa que a de Homero Pires, ratificando-se no conjunto delas o irritado desconforto de um "dandy" carioca, atento à moda dos coletes e das ombreiras de crivo, inconsolavelmente perdido entre os conterrâneos caipiras. É curioso vê-lo acusar a realidade local de responsável direta por dificuldades com a idealização romântica. Queixando-se das moças locais, deselegantes e desgraciosas, refere-se à visão de uma que vem vindo pela rua e que parece ser, à distância, a virgem angelical de seus sonhos; contudo, "vista de mais perto, esvai-se o encanto: o anjo torna-se mulher." Em outros momentos, com mais justiça chama para si mesmo a responsabilidade pelo "spleen": "Quando o tédio vem de dentro, não é o sorrir dos bailes que possa adoçá-los". Esse movimento pendular, que está em sua vida e em suas circunstâncias, dá estrutura aos melhores momentos da poesia de Azevedo.
É possível que algum leitor encontre interesse em momentos de retórica inteiramente submissa aos modelos, como nos versos de "O Conde Lopo" ou na prosa escolar de "O Livro de Fra Gondicario", exemplo de pastiche estilístico. Há quem goste dos contos amarrados da "Noite na Taverna", reconhecendo morbidez verdadeira, de traços góticos, onde talvez só haja maneirismo de escritor juvenil. Sempre interessante será percorrer, nesta edição, a sequência de alguns ensaios que marcaram, desde o primeiro momento até hoje, a fortuna crítica do poeta. Cada um desses ensaios oferece razões de apreço e restrição, movimento de pêndulo da crítica que acompanha o do poeta, em relação ao qual, em crítica recente, Wellington de Almeida Santos formula uma frase lapidar, que resume uma boa perspectiva de interpretação: "O sonho revela o ideal, mas o desejo é concreto".


Alcides Villaça é professor de literatura brasileira na USP.



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