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Afinação e dissonância
Nova edição das "Obras Completas" de Álvares de Azevedo
ALCIDES VILLAÇA
Álvares de Azevedo -
Obra Completa
Organização de Alexei Bueno
Nova Aguilar (Tel. 0/xx/21/2537-8275)
849 págs., R$ 90,00
A sobrevivência poética de Álvares de
Azevedo deve-se, em boa parte, a certo
mal-estar irônico que caracteriza essa
poesia, expresso em chave de autocrítica.
Muito leitor moderno pauta o gosto pelo
valor que atribui, às vezes já de saída e como cláusula obrigatória, à expressão desse mal-estar irônico, a essa consciência
manifesta dos limites da escritura. Tal
mecânica de gosto pode encerrar-se nos
limites estritos da linguagem que alude à
linguagem, tornando-se assim espelho de
um espelho. Os procedimentos verbais
auto-referentes não são, contudo, auto-interpretativos nem valores em si, mas
dependem do nosso retorno crítico e afetivo, que é quando se reconstitui ou não o
sentido de seus movimentos.
Sobreviver como poeta lírico significa
atender a novas chaves de um gosto testado no centro de uma nova compreensão
e de uma nova experiência da subjetividade, sem prejuízo para os interesses de
quem, num outro movimento, persiga a
"compreensão de uma época". A obra de
Álvares de Azevedo sincroniza-se conosco na vertente do "drama da criação",
quando o embevecimento pela retórica
marcada convive com o sentimento da
desconfiança, quando a constituição da
máscara mais convencional não elimina
a possibilidade da máscara acusatória. Os
dois famosos prefácios da "Lira dos Vinte
Anos" foram desde sempre tidos como
documentos da atilada consciência que o
poeta revelou sobre essa "binomia".
A significação desse "binômio" não se
paralisa, é óbvio, nos limites de uma antítese ou de um paradoxo, assim como a
condição de adolescente e estudante desterrado, a timidez amorosa, o bom berço
familiar e as leituras de Byron e Musset
não são condicionantes explicativas, mas
partes da questão. A questão, essencialmente lírica, de Álvares de Azevedo está
em compor a expressão de sua identidade figurando-a também no embate com
os limites objetivos de um poeta brasileiro, vale dizer: no espaço de um específico
dilema cultural. Esse dilema alcançou
uma tradução muito local na comparação entre o Rio de Janeiro e São Paulo: a
"caipirada" paulistana faz o poeta amargar saudades da corte, a vila paulista de 20
mil habitantes parece-lhe infame e atrasada, provocando um tipo de "spleen"
bastante particular, visível nas cartas à
mãe e em passagens do "Macário". Mal
aclimatado em taverna paulistana e na
parceria com o poeta-estudante, Mefistófeles empresta ao nosso Fausto um ar singularmente patético, adicionando-se ao
drama, aqui e ali, alguma parcela de humor involuntário. Nesse registro híbrido
de tom solene e farsa adivinhada, há uma
questão aguda de dependência cultural
versus voluntarismo pessoal e nacionalista que Rubem Fonseca avaliaria magistralmente em forma ficcional: leia-se o
conto "H.M.S. Cormorant em Paranaguá" e acompanhe-se o sugestivo diálogo
imaginado entre Lord Byron, aqui desembarcado do navio inglês, e o nosso
complexado Maneco.
O centro resistente da poesia de Azevedo representa-se em "Idéias Íntimas",
"Spleen e Charutos" e em mais uma dúzia de poemas da "Lira". Está nesse núcleo o que não encontraremos com a
mesma força em outros poetas românticos brasileiros: uma desconfiança aguda
quanto aos dois gumes da faca em que toda idealização extrema se converte, ferindo ao mesmo tempo os limites sensíveis
da vivência e o imaginário idealizado.
Quando, por exemplo, a imagem etérea
da bela adormecida pinta-se numa estampa na parede do quarto de estudante,
encaixilhada nesse outro esquife de vidro, monta-se uma figuração muito intensa que funciona também como descrição material. Há, na recolha dos detalhes
da situação empírica, dissonâncias em
relação à "infinitude íntima", o que Antonio Candido reconheceu como "emprego da discordância e do contraste, como
corretivo a uma concepção estática e homogênea da literatura".
Traduzir a dissonância
Sim, a lição parece vir de Musset, apontada em epígrafe, e a pose de maldito vem
de Byron, mas a expressão de Azevedo é
inteiramente convincente quanto ao foco
do problema singularmente seu, que é o
de traduzir a dissonância em sentido próprio. O estudante de direito, arrasado pelo provincianismo da "pátria dos Tibiriçás, Buenos e Bobadelas", mocinho vagamente aristocrático, com conhaque, charuto e pajem, anda pelo quarto perguntando por seus anseios, comovendo-se e
rindo deles, autor, protagonista e vítima
das idealizações, nas quais vibra o desejo
indisfarçável.
Beijar o vidro poeirento que recobre a
estampa da mulher desejada é estimar a
mediação romântica no que ela tem de
desejo de aproximação e desejo de distância, é acusar, no gesto materializante,
uma espécie de substrato físico e autobiográfico dessa mediação. Grandes poemas
de Manuel Bandeira alcançariam muito
tempo depois, pelo talento extraordinário e com as novas chaves do tempo, uma
naturalidade melancólica e serena na
avaliação das experiências líricas.
Pergunto-me se também em relação ao
tema da morte não se encontraria, no
contexto da obra azevediana, um timbre
mais particular. É certo que o temor/anseio pela morte faz figura de lugar-comum romântico em muitos poemas
-mas a insistência do poeta em já se
anunciar defunto, confessando, mal saído da adolescência, que "de tanta inspiração e tanta vida (...)/ resta um poeta morto" ("Cadáver de Poeta"), ganha, em seu
contexto específico, o sentido de uma
condenação da arte que não lhe pode fornecer um auto-retrato mais... realista.
Esse pretendido "realismo" se representa por vezes de modo original e surpreendente: no soneto "Pálida, à Luz da
Lâmpada Sombria", ele está inteiro no
olhar da bela que desperta em seu leito e
flagra, rindo, o embevecimento do rapaz,
"voyeur" embasbacado, desmascarado e
já confuso. Não se trata de sátira, pela
qual qualquer estilo ganha fôlego "realista"; trata-se de um drama que a lírica romântica encena vingando os limites de
sua convenção. A suspeita de farsa, inclusa nesse drama, talvez espelhe um vago
desconforto pela apropriação do estilo
europeu, talvez reponte nessa poesia como nuance e discreta contribuição de um
brasileiro ao repertório geral. A visão rebaixada que Macário tem de São Paulo
coincide com a do Azevedo das cartas, o
que não deixa de ser sugestivo.
Quanto às cartas do poeta, esta nova
edição é mais generosa que a de Homero
Pires, ratificando-se no conjunto delas o
irritado desconforto de um "dandy" carioca, atento à moda dos coletes e das
ombreiras de crivo, inconsolavelmente
perdido entre os conterrâneos caipiras. É
curioso vê-lo acusar a realidade local de
responsável direta por dificuldades com
a idealização romântica. Queixando-se
das moças locais, deselegantes e desgraciosas, refere-se à visão de uma que vem
vindo pela rua e que parece ser, à distância, a virgem angelical de seus sonhos;
contudo, "vista de mais perto, esvai-se o
encanto: o anjo torna-se mulher." Em
outros momentos, com mais justiça chama para si mesmo a responsabilidade pelo "spleen": "Quando o tédio vem de dentro, não é o sorrir dos bailes que possa
adoçá-los". Esse movimento pendular,
que está em sua vida e em suas circunstâncias, dá estrutura aos melhores momentos da poesia de Azevedo.
É possível que algum leitor encontre interesse em momentos de retórica inteiramente submissa aos modelos, como nos
versos de "O Conde Lopo" ou na prosa
escolar de "O Livro de Fra Gondicario",
exemplo de pastiche estilístico. Há quem
goste dos contos amarrados da "Noite na
Taverna", reconhecendo morbidez verdadeira, de traços góticos, onde talvez só
haja maneirismo de escritor juvenil.
Sempre interessante será percorrer, nesta
edição, a sequência de alguns ensaios que
marcaram, desde o primeiro momento
até hoje, a fortuna crítica do poeta. Cada
um desses ensaios oferece razões de apreço e restrição, movimento de pêndulo da
crítica que acompanha o do poeta, em relação ao qual, em crítica recente, Wellington de Almeida Santos formula uma frase
lapidar, que resume uma boa perspectiva
de interpretação: "O sonho revela o ideal,
mas o desejo é concreto".
Alcides Villaça é professor de literatura brasileira
na USP.
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